Título: A batalha entre Exército e Igreja no São Francisco
Autor: Taves, Rodrigo França
Fonte: O Globo, 16/12/2007, O País, p. 12

ÁGUAS DA POLÊMICA: Militares fazem ações sociais e já conseguem convencer moradores sobre importância do canal.

Força é aliada do governo na luta contra a resistência dos católicos à obra de transposição do rio no Nordeste.

FLORESTA e CABROBÓ (PE). Ao entregar ao Exército a tarefa de iniciar as obras de transposição das águas do Rio São Francisco, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva conquistou um aliado importante em sua luta contra os inimigos do projeto. Os trechos que dois batalhões de engenharia do Exército estão encarregados de executar são bem pequenos: correspondem a menos de 3% do total da primeira etapa da obra. Mas o trabalho de marketing em que os militares se lançaram, principalmente na área do sertão nordestino mais diretamente afetada pela obra, é no momento o principal contraponto do governo à campanha cada vez mais intensa da Igreja Católica contra a empreitada.

Semana passada, enquanto tratores e escavadeiras trabalhavam a todo vapor às margens do São Francisco, o Exército se dedicou a um grande trabalho social nas duas cidades onde, desde junho, estão seus canteiros de obra: Floresta e Cabrobó, em Pernambuco. Em ambas, foi realizada durante quatro dias o que os militares chamam de ação cívico-social. Cerca de 30 mil moradores receberam atendimento médico e dentário, e puderam tirar documentos de identidade, CPF e certidões de nascimento. Houve atividades esportivas e recreativas, e até apresentações da bandinha de música do Exército.

Enquanto o povo carente fazia filas nos postos de atendimento, os militares proferiam palestras para exaltar os benefícios da transposição para as cidades da região. Os principais generais da região, entre eles o comandante militar do Nordeste, general-de-exército Jarbas Bueno da Costa, acompanharam a ação cívico-social e cumpriram intensa agenda política, que incluiu almoços e jantares com vereadores e prefeitos. A menos de 200 quilômetros dali, em Sobradinho (BA), o bispo de Barra, dom Luiz Flávio Cappio, ganhava a solidariedade da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) para sua greve de fome contra a obra, que sexta-feira completou 17 dias.

- Para o Nordeste, é uma obra importante. Se não for a melhor solução, é uma grande solução para o problema da seca enfrentada pelos nordestinos. Senti, tanto em Floresta quanto em Cabrobó, que a maioria é amplamente favorável à obra - disse o general Jarbas, após almoço com o prefeito de Floresta, Afonso Ferraz (PSDB).

Índios agora não fazem críticas

Uma das comunidades beneficiadas pela ação social foi a dos índios truká, de Cabrobó, que estava entre os maiores opositores do projeto e hoje já não faz críticas abertas à obra. Em agosto, os truká participaram da invasão do canteiro de obras do Exército junto com o Movimento dos Sem Terra (MST) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), e só saíram após ordem judicial de reintegração de posse. Semana passada, os generais foram à aldeia acompanhar o atendimento de médicos e dentistas militares às crianças índias, e saíram com a certeza de que a contestação à obra é coisa do passado.

- Temos de ajudar os pobres que estão morrendo de sede por aí. A obra não vai desviar o rio, vai só bombear a água. Não dará o mesmo impacto que a represa de Sobradinho - disse Damião Pereira, um dos caciques dos truká.

Na aldeia, porém, ainda há índios que se solidarizam com dom Cappio. Em sua primeira greve de fome, o bispo ficou num prédio nos arredores de Cabrobó e recebeu a companhia dos truká. Dessa vez, o religioso preferiu entrar em jejum no lado baiano do São Francisco, centro da resistência à transposição. Mas há índios como Assuera Ribamar, professora da escola indígena truká, que seguem acreditando nos argumentos do religioso para contestar a obra:

- O pobre não terá acesso à água dos canais de transposição. É uma obra para beneficiar os latifundiários.

Convidado para o ciclo de palestras dos militares, o bispo de Floresta e Cabrobó, dom Adriano Vacino, viajou para Brasília e não acompanhou sequer a ação cívico-social. Deixou de ouvir argumentos da campanha pró-transposição como os da palestra do tenente-coronel Vanilson Gurgel, chefe do canteiro de obras do Exército em Floresta.

- Se alguém for contra a obra, não deve ser um bom nordestino. Serão 36 projetos transformando a região num verdadeiro paraíso. Petrolina vai perder de longe - disse o militar, referindo-se à cidade que virou pólo agrícola na bacia do São Francisco ao receber projetos de agricultura irrigada.

- Trata-se de propaganda enganosa - reage dom Adriano Vacino. - Essa obra é grande e cara, e não dará solução para o problema. A água chegará para uma infinita minoria.

A CNBB convocou todos os cristãos a iniciar jejum em solidariedade a dom Cappio, e atos públicos já estão programados, com a participação da Igreja, em diversas cidades brasileiras.

Brigas judiciais emperram obra

Do ponto de vista da obra de engenharia, os militares estão dando o pontapé inicial na transposição, construindo os primeiros quilômetros dos canais dos eixos norte e leste do projeto, e as duas primeiras barragens. No total, o trecho entregue aos militares custará apenas R$103 milhões dos R$5,2 bilhões orçados para a primeira etapa. Caberá às grandes empreiteiras, que disputam os 14 lotes de licitação, fazer o grosso da obra. O primeiro lote está enrolado por brigas judiciais entre as empresas concorrentes.

Antes de serem paralisadas na tarde de quinta-feira, por liminar do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, as frentes de obra tinham cerca de 300 homens do 2º e do 3º Batalhões de Engenharia de Construção, sediados em Teresina e Picos, no Piauí, e cerca de 80 soldados de batalhões de Infantaria, responsáveis pela segurança. Semana passada, com a presença dos generais e o aumento da pressão da CNBB contra a obra, os canteiros ganharam também a proteção de soldados da Polícia do Exército muito bem armados. Havia tanques, metralhadoras e fuzis junto a tratores e caminhões. O Exército alegou que os soldados da PE estavam em treinamento.

Em Floresta, ponto de partida para o eixo leste do canal de transposição, que levará água até a Paraíba, o Exército está encarregado de fazer a Barragem de Areias, com 1.420 metros de extensão, e 5.825 metros de canal, dos quais 1.400 dentro da represa de Itaparica, no São Francisco, de onde será retirada a água. Ao todo, o eixo leste terá 220 quilômetros, dos quais o Exército fará menos de seis. Das 12 barragens previstas no projeto, os militares estão encarregados de duas.

Em Cabrobó, onde começa o eixo norte, com 420 quilômetros de extensão até o Rio Grande do Norte, o Exército já adiantou bastante as escavações para fazer um canal de 2.080 metros a partir do leito do Rio São Francisco, e vai construir também a Barragem de Tucutu, com 1.790 metros de extensão. Ao todo, a represa de Tucutu terá 11 quilômetros de perímetro e irá armazenar 24,8 milhões de metros de água, quatro vezes mais que a represa de Areias, no eixo leste, que guardará 6,2 milhões de metros cúbicos de água.

Se a obra for liberada pela Justiça sem muitos atrasos, o Exército prevê concluir a construção das duas barragens até o fim de 2008, mas o canal do eixo leste deve levar três anos em construção. O início da construção dos outros lotes depende do fechamento das licitações.