Título: Pedido de uma mãe de presente
Autor: Farah, Tatiana
Fonte: O Globo, 24/12/2007, O País, p. 3

Milhares de crianças que estão em abrigos e também de pais esperam pela adoção no Brasil.

Ele não precisa ser gordo, ter barba branca nem trazer presentes. Aliás, não precisa ser homem. Para pelo menos 12 mil crianças que vivem em abrigos espalhados pelo país, um pai e uma mãe de verdade são um sonho mais distante do que receber a visita de Noel. Sem família e prontas para serem adotadas em poucos meses, essas crianças perdem a infância nos asilos porque não correspondem ao perfil desejado pela maioria das famílias que querem adotar um filho: não são brancas, passaram dos 2 anos de idade, fazem parte de um grupo de irmãos, têm algum problema de saúde.

Se de um lado há 12 mil brasileirinhos sem família, só em São Paulo há sete mil pessoas esperando para adotar uma criança. Se fosse matemática, seria simples. Mas, à espera do filho ideal, milhares de pretendentes aguardam até quatro anos para completar sua família. Quem esquece os preconceitos ou o "ideal" e decide conhecer as crianças que estão disponíveis acaba mudando de planos. Troca o "bebê perfeito" pelo menino da risada banguela, com os seus 6 anos de vida dura no abrigo.

- O pretendente ficou mais flexível. Hoje, fazemos adoções que eram impensáveis dez anos atrás: adoções de grupos de irmãos, de crianças especiais, de adolescentes. Mas essa mudança de comportamento é muito lenta e ainda não se reflete em números - explica a psicóloga Leila Dutra de Paiva, que trabalha com as adoções da Vara da Infância e Juventude do Fórum de Pinheiros, em São Paulo.

De 2000 a 2007, a Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional (Cejai) conseguiu um lar definitivo para 30 mil crianças de São Paulo. Este ano, foram feitas 2.592 adoções nacionais e 147 internacionais no estado. Aguardam, ainda, 1.113 crianças e adolescentes. O pretendente a pai ou mãe ficou mais flexível, mas o ideal do bebê branco, de saúde perfeita, perdura no desejo das futuras famílias.

Idade, doenças e irmãos "assustam"

A Cejai concluiu este mês uma pesquisa sobre 2.208 pretendentes a adotar uma criança, que se inscreveram no ano passado na Justiça paulista. Enquanto menos de 1% quer uma criança com mais de 7 anos, 64,8% preferem um filho de até 2 anos. Quanto à cor da pele, 44,16% querem uma criança branca; 5,93%, parda; e 1%, negra.

O grupo de irmãos é também um fator que "assusta" os futuros pais: 40,67% não aceitam adotar irmãos e 17,89% dos pretendentes só adotariam se fossem gêmeos. Dificuldades de saúde são outro impedimento: apenas 2,94% adotariam um bebê com um problema físico incurável. A criança portadora do vírus HIV "positivado", ou seja, constando nos exames, mesmo sem manifestação da Aids, seria aceita por 4,57% dos pretendentes. Doenças mentais não-tratáveis são aceitas por um percentual ainda menor: 1,36% dos futuros pais.

- A adoção é a chance de dar uma família àquela criança que sofreu abusos, foi abandonada ou perdeu os pais. A adoção é para dar um lar para essa criança, não se pode perder isso de vista - reforça o juiz Reinaldo Cintra, coordenador do Cejai de São Paulo, afirmando que meninos e meninos que "sobram" nos abrigos têm sempre o mesmo perfil: - São crianças com problemas de saúde severos, adolescentes e grupos de irmãos. Nós tentamos conseguir famílias para essas crianças, mas não conseguimos. Temos de deixar isso claro.

A pesquisa do Cejai, em comparação a 2005, mostra uma ligeira modificação no comportamento dos pretendentes: para crianças de 5 a 6 anos, por exemplo, a preferência aumentou 0,89%. Na matemática, é pouco. Na prática, são 22 famílias. Para a Cejai, são "22 possibilidades a mais de encontrar um lar para essas crianças". Os pretendentes também mostraram estar mais flexíveis em relação ao passado das crianças, aceitando histórico de alcoolismo e drogas dos pais.

Pode-se dizer que a professora Glaucia, mãe de três filhos, é uma praticante da adoção tardia (termo usado para as adoções de crianças "fora" do perfil). Primeiro veio Natanael, com 8 anos, depois um casalzinho de irmãos, com 2 e 4 anos. De sua casa, em Rondonópolis, em entrevista por telefone ao GLOBO, ela sofria o assédio de toda mãe de três crianças pequenas. Enquanto conversava, foi interrompida diversas vezes pelos filhos menores.

- Estamos de mudança de cidade. Eles estão a mil - conta a mãe, rindo: - Olha, não tem isso de querer uma criança assim ou de outro jeito. Quanto fomos adotar nosso primeiro filho, queríamos um bem pequeno. Daí, meu marido tropeçou no pé do Natanael, que estava embaixo da mesa. Ele o pegou no colo e o Natanael olhou para mim e disse: "Como você demorou!". Era o meu filho.

Pobreza leva crianças a abrigos

Segundo a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, 120 mil crianças vivem em abrigos de todo o país e 12 mil delas precisam de uma nova família. Mas a grande maioria tem família e não perdeu os vínculos. O que empurrou um quarto desses meninos e meninas para as instituições foi a pobreza.

Segundo Mariza Tardelli, coordenadora do Programa de Fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos, o foco do governo federal é trabalhar os problemas dessas famílias para que as crianças possam retornar a seus lares:

- É bastante legítimo querer ter um filho e manifestar isso, mas a adoção não existe para tapar o buraco do casal que não pode ter filhos. Historicamente, muitas crianças tiveram suas vidas destruídas dentro dessas instituições (os abrigos). Em poucos anos, elas se tornam crianças não-adotáveis.

O esforço pelo "retorno ao lar" tem mobilizado entidades civis, grupos de apoio a futuros pais e o Judiciário:

- É preciso trabalhar com as famílias de origem, os abrigos e as crianças para que elas sejam "adotadas" de novo em seus próprios lares - afirma o presidente da Apamagis (Associação Paulista de Magistrados), o desembargador Sebastião Luiz Amorim, um dos organizadores da campanha "Mude um destino", encampada pelos juízes para ajudar abrigos e famílias em situação de risco.