Título: O direito à vida
Autor: Tavares, Claudio de Mello
Fonte: O Globo, 22/12/2007, Opinião, p. 7

A extinção da CPMF não pode colocar fim ao debate democrático que interessa às camadas mais amplas da sociedade brasileira. O que está em causa, de fato, é o problema da saúde pública em nosso país. De um lado, é a perplexidade dos que assistem à permanente agonia de uma solução que nunca se consuma e se perde na vala escura das promessas sempre repetidas, mas jamais inteiramente cumpridas. De outro, a maioria esmagadora dos que penam na frustrada esperança do socorro a vir do Poder Público, quase sempre insatisfatório, se não inútil, por ausência ou ineficiência.

Não são poucos os reclamos dos mais necessitados, que já chegaram, com freqüência, à barra dos tribunais, especialmente nas hipóteses mais extremas e urgentes em que, sob argumento da falta de recursos específicos, a administração pública levanta a parede da impenhorabilidade dos bens públicos, como se fosse possível ou necessário conter o que eminente jurista francês, desde a primeira metade do século passado, já denunciava como "a revolta dos fatos contra os Códigos".

Em hipóteses dessa ordem, nos tribunais já se vai consolidando o entendimento mais justo e consentâneo com as normas inscritas na vigente "Carta Magna", e com a própria legislação ordinária, segundo as quais o que é preciso proteger e resguardar, em tais situações dramáticas, é o direito à vida.

A regra da impenhorabilidade, mais do que a relutância da autoridade pública, há de ceder lugar ao propósito superior de dar-se ao indivíduo a possibilidade de vencer o obstáculo de natureza legal em favor da interpretação que melhor se ajuste aos mais sensíveis resultados sociais e humanos do benefício pleiteado. A penhorabilidade desses bens, notoriamente constituídos por importâncias em moeda corrente e sujeitos aos aleatórios das proclamadas restrições orçamentárias, torna-se assim possível. Na falta ou na impossibilidade de outro meio coercitivo, não se pode sacrificar, afinal, o indeclinável direito à vida, e a oportunidade de exercê-lo em sua plenitude.

Tal entendimento assim se cristaliza como obra meritória do direito pretoriano e como ação objetiva do Poder Judiciário. E acabará, ao que tudo indica, por vencer resistências apenas decorrentes da incompreensão e do apego exagerado dos que ainda se agarram à letra fria da lei, em detrimento de seu verdadeiro espírito e de sua mais importante finalidade.

CLAUDIO DE MELLO TAVARES é juiz e presidente da 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio.