Título: Após o deserto e a dor, vida nova
Autor: Aggege, Soraya
Fonte: O Globo, 25/12/2007, O País, p. 3

Famílias de refugiados palestinos acolhidas pelo país fazem do Brasil sua pátria.

Mohammed Armand Mussan é um bebê de sorte. Apesar de ter todos os parentes desempregados e nenhum bem familiar. E mesmo tendo nascido num dos países de maior desigualdade na distribuição de renda entre seus cidadãos. Mais importante é que Mohammed nasceu "cidadão" e terá os direitos fundamentais garantidos, dizem seus pais, Thaer Mohammed e Hoda Walled. O casal não pára de sorrir e repetir, sempre em árabe: "Mohammed tem pátria! Mohammed é brasileiro!". Há três gerações eles e outros quase cem refugiados da antiga Palestina vagavam sem cidadania mundo afora, até serem acolhidos pelo Brasil este ano.

- Muitas vezes, no deserto, o demônio nos soprava a ilusão de que voltaríamos à nossa terra. Mas rezávamos para que nosso bebê nascesse numa pátria verdadeira, num lugar de paz. Alá nos atendeu - conta Thaer, que, juntamente com a mulher, Hoda, viveu quase cinco anos no campo de Ruweished, no deserto da Jordânia, à espera de um refúgio, depois de serem expulsos do Iraque na ocupação americana, em 2003.

- Nossos avós foram expulsos da Palestina (em 1948) e viveram no Iraque sem cidadania, como nossos pais e nós mesmos. É muita felicidade ter agora um filho com pátria, um brasileiro - diz Hoda.

Beneficiados pelo projeto do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), presidido pelo Ministério da Justiça e articulado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e pela Cáritas Arquidiocesana, os refugiados palestinos foram instalados no interior de São Paulo e no Rio Grande do Sul, entre setembro e outubro deste ano. Durante dois anos, eles terão moradia e alimentação garantidas. Foram instalados em casas simples, e recebem, em média, cerca de R$200 por pessoa a cada mês. Depois, terão que cuidar da sobrevivência no Brasil.

Por enquanto, além da cultura tão diferente, a maior dificuldade dos palestinos tem sido a língua. A maioria desconhece o alfabeto ocidental. Outros conheciam um pouco de inglês e ainda tropeçam nas palavras:

- Obrigado, de nada, bom dia, bem vindo, por favor, um, two (dois em inglês), três... Está difícil, mas vou conseguir. Árabes são teimosos - diz, orgulhoso, o contador Walid Sad Tamimi.

Mas a língua nem sempre embaraça os laços humanos. O pai de Mohammed, Thaer, dá um exemplo de como a realidade pode ser surpreendente. Com a ajuda de um intérprete, ele diz:

- Quero publicar uma homenagem aos maiores amigos que já fiz no Brasill. Mesmo sem falarmos a mesma língua, só com gestos, no dia do parto de minha mulher, os nossos vizinhos brasileiros, chamados senhor Lima e senhora Alessandra, nos levaram ao hospital e cuidaram muito de nós. Todos os dias eles vêm em nossa casa saber do que precisamos. Nós nos entendemos sempre porque eles nos falam com a língua da humanidade.

Treino de futebol com pedras

É nessa mesma língua do humanismo que o técnico de futebol Alexandre Aparecido Maciel tem treinado Ali Kaled, de 18 anos, e Mohammed Mahamud, de 24, no time Twist, de Mogi das Cruzes. Tanto, que conseguiu marcar testes para os garotos, em fevereiro. Eles tentarão jogar profissionalmente no Mogi Limitada e no Íbis de Pernambuco.

- No deserto, não tínhamos uma bola. Então, jogávamos futebol com pedras. Era o que tínhamos. Treinamos muito nos últimos cinco anos porque queremos ser jogadores. Aqui, além de bola, temos quem nos ajude - conta o zagueiro Mahamud.

Mesmo sem falar a mesma língua e com culturas diferentes, muitos jovens já ficaram amigos dos palestinos, graças ao esporte.

- No começo, quando ele me chamou, achei que estava me xingando de tolo. Ele disse: anta!. Fiquei chateado. Mas depois me explicaram que esse som significa "você" em árabe. Hoje somos grandes amigos, passamos os dias juntos, jogando, ouvimos músicas, cantando. Nós nos gostamos tanto que conseguimos nos comunicar por gestos - explica o lateral Renan Antonio Prado, de 18 anos.

"Estes olhos viram muitas atrocidades"

O atacante Ali sonha com o futebol, como os outros garotos, mas explica que seu maior desejo é voltar a estudar, assim que aprender o português.

- Há cinco anos não temos escola. Estudei nove anos em Bagdá, mas depois fomos levados para o deserto, onde não havia nada. Em Bagdá eu tinha amigos, cinco gatos, muitos primos. Sofri muito quando fomos expulsos. Estes olhos viram muitas atrocidades. Quando os fecho, revivo tudo aquilo. Foram mil e uma noites de pesadelos. Agora quero estudar muito. Vou estudar direito internacional para ajudar outros refugiados. Não posso me esquecer do que vivi jamais - diz Ali, que fala inglês, anda com um dicionário e consegue ajudar os amigos a se relacionarem.

Outra dificuldade dos refugiados palestinos no Brasil é com a alimentação. Arroz, feijão e carne já fizeram com que um dos três idosos palestinos, que perderam suas famílias, sobreviveram ao deserto e hoje estão instalados em asilos em Mogi das Cruzes, saísse do abrigo e se perdesse pelas ruas da cidade, sem falar uma só palavra em português.

- Ele queria comida árabe e mais cigarros também. No asilo não poderiam lhe dar isso. Pela idade, ele não deveria fumar tanto, mas imagine, nessa idade, depois de passar tantas tristezas, ficar sem conseguir se comunicar, longe de todos. Ao final, conseguimos encontrá-lo, mas tem sido muito difícil para eles - conta o xeque Hosni Abdelhamid Mohamed Youssef, da Mesquita de Mogi das Cruzes.

É pelo Islã que muitos dos palestinos sunitas conseguem se ajudar no Brasil. No Iraque, eles foram perseguidos também por serem sunitas, que têm posições políticas moderadas ou neutras. Por isso, foram perseguidos pelos muçulmanos com posições mais extremadas, como os xiitas e os caridjitas.

No Brasil tem prevalecido o "Zakat", um dos cinco pilares muçulmanos: uma lembrança permanente de que toda riqueza pertence a Deus, e que o indivíduo não pode dispor dela sozinho, já que cada homem é membro de uma comunidade. Ou seja, pelo princípio do Islã, os árabes de outras nacionalidades ajudam os mais pobres.

A Mesquita de Mogi das Cruzes reúne famílias árabes procedentes de vários países, que têm ajudado os palestinos. Na última quarta-feira, dia do "sacrifício" para os muçulmanos, vários se cotizavam para ajudar os palestinos com alimentos não tão comuns no Brasil, como carne de carneiro, tâmaras e pistache.

- Os árabes têm hábitos alimentares muito diferentes. É difícil para eles e tentamos ajudá-los- afirmou o xeque Hosni.

Para melhorar a alimentação da família, Rahmah Mohammed Sha"Ban, de 56 anos, e o marido, Mohammed Talib, estão conseguindo vender o artesanato que faziam no deserto da Jordânia nas ruas de Mogi das Cruzes. Eles produzem cestos de plásticos, tapetes e peças em crochê.

- A ajuda do programa (de reassentamento) é muito boa, mas não podemos ainda comprar toda a alimentação que gostaríamos, pois as distâncias são longas e gastamos também com transporte. A gente deixa a vontade para lá e se alimenta com o que pode, o que inclui até arroz e feijão, a comida brasileira. Para nós, o importante é termos uma pátria agora - diz Rahmah.