Título: Administração da pobreza
Autor: Badin, Luciana
Fonte: O Globo, 25/12/2007, Opinião, p. 7

As pesquisas divulgadas recentemente pelo IBGE e pela FGV acerca da diminuição da pobreza - apontando, entre outros dados, que a miséria atingiu seu patamar mais baixo desde 1992 - mostram que chegamos, tal como denominou o geógrafo Milton Santos (1926-2001), à fase da pobreza planejada. Não resta dúvida que é uma boa notícia ver estes índices, que tanto nos envergonham, diminuírem. Porém, nenhuma das pesquisas faz uma análise crítica sobre os limites dessa diminuição, frente aos problemas estruturais que reproduzem o estado de pobreza.

Isto fica explícito quando analisamos o índice de Gini, ferramenta utilizada para medir o quanto é concentrada a renda em uma sociedade. Os levantamentos apontam que o índice vinha baixando desde 1997, mas diminui o seu ritmo a partir de 2006, quando cai de 0,543 para 0,540 (quanto mais próximo do zero melhor é a distribuição de renda). A explicação para essa baixa está no fato que subiram os ganhos dos mais pobres e também dos mais ricos, sendo que um pouco mais os dos primeiros. No caso das regiões Norte e Nordeste a desigualdade avançou, apesar dos programas de transferência de renda.

De fato, ainda que a pobreza tenha recuado graças ao programa Bolsa Família, à elevação do salário mínimo e ao aumento do emprego formal, questões estruturais que reproduzem a pobreza permanecem sem um enfrentamento devido. As comemorações em torno desse pequeno recuo explicitam uma nova forma de encarar a pobreza: esta torna-se aceitável, contanto que fique dentro de um determinado patamar.

Tomando como base um dos textos clássicos desse grande geógrafo que foi Milton Santos, podemos dizer que chegamos a uma fase na qual há pequenas melhorias no nível de renda e consumo, mas problemas estruturais, tais como a baixa escolaridade, permanecem na origem do problema. Em artigo de 1978, intitulado Planejando o Subdesenvolvimento e a Pobreza, Santos, a partir de uma crítica implacável sobre a utilização de uma ferramenta metodológica, o planejamento, demonstra como o nosso estado de pobreza não é fruto da nossa incapacidade de nos anteciparmos ao futuro. Pelo contrário, argumenta, o planejamento, em sua versão tecnocrática, esteve não apenas a serviço, mas foi um conceito-chave criado pelo sistema para impor em toda parte a internacionalização do capital.

Santos destaca a "fé cega" em taxas de crescimento, que se tornaram "critério por excelência e a medida máxima do progresso". Na verdade, diz o geógrafo, números, índices e equações são utilizados para "provar" que a distância que separa os países ricos dos países pobres pode ser revertida caso imitemos os primeiros em sua forma de produzir, consumir, pensar e viver. Tanto Milton Santos como o economista Celso Furtado (1920-2004) foram agudos ao mostrar o papel da importação dos modelos de consumo e da dominação cultural na penetração do capital, e a desnudar o fato de que a pobreza não é um fenômeno quantitativo, mas qualitativo, e, portanto, intrínseco ao sistema.

A grande contribuição de Milton Santos foi evidenciar o desdobramento do modelo e antecipar algo a que assistimos neste início de século XXI: a administração da pobreza. Em outras palavras, é preciso que haja um aumento em termos absolutos da renda e do consumo da população empobrecida. Mas esse aumento não aponta para a eliminação da pobreza, pois não está em questão reduzir as taxas de acumulação. Essa fase, alerta Santos, "conduzirá a uma nova forma de pobreza, a pobreza planejada".

Não se trata, aqui, de fazer uma profissão de fé antiplanejamento ou desconsiderar os pequenos avanços e as políticas que permitiram tais conquistas. Mas, também, não é aceitável deixarmos de lado uma leitura crítica sobre tais resultados. É sempre bom lembrar que o combate não deve ser apenas à pobreza, mas ao que a gera e a perpetua. Caso contrário, a sua naturalização e a sua administração serão coroadas.

LUCIANA BADIN é economista e pesquisadora do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).