Título: Especialista: número de mortes pode ser o dobro
Autor: Boos, Marita; Freire, Flávio
Fonte: O Globo, 27/12/2007, O País, p. 4

Vítimas que morrem em hospitais não entram no balanço da PRF nem as de estradas estaduais e municipais.

RIO e SÃO PAULO. O número de mortos vítimas de acidentes nas estradas neste feriado de Natal é certamente quase o dobro dos 196 registrados pela Polícia Rodoviária Federal (PRF). A afirmação é do professor Paulo Fleury, do Instituto de Pós-graduação e Pesquisa em Administração (Coppead) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador de um amplo estudo sobre trânsito e morte em estradas. Levantamentos mostram que, em média, cem pessoas morrem por dia nas rodovias brasileiras.

- Além do fato de não haver um balanço nacional de acidentes nas estradas estaduais e vias municipais, é ainda preciso levar em conta que a Polícia Rodoviária não computa como morte nas estradas aquelas ocorridas nos hospitais para onde as vítimas são levadas - diz o especialista.

Só 50 mil quilômetros de estradas do país são federais

De acordo com o professor, o Brasil tem em torno de 1,8 milhão de quilômetros de estradas, dos quais apenas 200 mil são pavimentadas. Desses 200 mil, cerca de 50 mil são rodovias federais. E a grande maioria da extensão de 1,6 milhão de estradas não-pavimentadas é municipal ou estadual.

- É frustrante. As mortes no trânsito não são uma epidemia de uma doença que não se sabe a causa. Ao contrário: se sabe a causa, o lugar, o motivo. É mesmo descaso das autoridades. A vida que se perde no trânsito parece não ter valor.

Para Fleury, diminuir o número de vítimas no trânsito não é uma tarefa complicada:

- É só botar a lei, o Código de Trânsito para funcionar. Punir excesso de velocidade, resolver o problema da má sinalização, por exemplo.

O professor criticou ainda o fato de não haver um órgão, uma autoridade responsável realmente pelo trânsito. Diz que o processo decisório é dividido entre órgãos como Ministério dos Transportes, Denatran, Polícia Rodoviária Federal, entre outros, e não se tem a quem cobrar.

São muitas as deficiências apontadas por especialistas para explicar a tragédia nas estradas brasileiras. Entre os fatores que colaborariam para o número excessivo de acidentes e mortes, crescentes a cada ano, estão também a sinalização de radares em rodovias e o aumento de 20% para 50% do limite acima da velocidade permitida para a suspensão da carteira de habilitação. Associado a esses problemas, ainda segundo especialistas, a falta de responsabilidade de motoristas, passageiros e pedestres ajuda a potencializar o grau de insegurança no sistema de trânsito do país.

- Eu não responsabilizo as condições das rodovias, nem as dos veículos. O que está matando mesmo é o comportamento humano. Por trás de cada acidente de trânsito há uma infração cometida, isso é fato - analisa o ex-coordenador do Programa de Redução de Acidentes de Trânsito do Ministério dos Transportes Fernando Pedrosa.

Mas além do problema de comportamento, as mudanças no Código de Trânsito Brasileiro são vistas como estímulo à velocidade, problema que provoca grande parte dos acidentes, seja nas estradas ou em perímetro urbano. A ampla sinalização dos radares, como prevê a lei, é alvo de severas críticas por parte dos especialistas.

- A sinalização de radares é como um passaporte para a impunidade. Essa resolução é criminosa. É como se dissesse ao motorista: "Aqui você não pode correr. Depois, pode meter o pé no acelerador à vontade que não será multado". Isso não existe em lugar nenhum do mundo - diz o coordenador do SOS Estradas, Rodolfo Rizzotto, para quem essa é uma medida que deve ser reavaliada urgentemente no Congresso para tentar reverter a drástica estatística nas rodovias.

O diretor científico da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), José Heverardo Montal, também critica a sinalização de radares, vista por ele como um passe livre para que os motoristas abusem da velocidade em trechos em que não há fiscalização.

- Sinalizar o radar é como tirar seu efeito pedagógico - diz Montal, que prega ainda maior controle por parte dos que cercam o motorista: - Muitas vezes o motorista acredita que pode pegar a estrada até mesmo com um pouco de sono. Nesses casos, quem vai viajar com ele deve ter a responsabilidade de não deixá-lo dirigir.

Mudança no Código de Trânsito favorece impunidade

A alteração no Código de Trânsito que elevou de 20% para 50% do limite acima da velocidade para que o motorista tenha a carteira de habilitação suspensa também é colocada na lista dos fatores que incentivariam o excesso de velocidade, e, conseqüentemente, a impunidade de quem comete infração no trânsito.

- Se um motorista fosse pego correndo numa velocidade 20% acima do limite permitido, além dos 7% de tolerância do radar, ele teria sua carteira suspensa. Pelas contas, o motorista não poderia ultrapassar 154 km/h. Acontece que aumentaram essa margem para 50%. Ou seja, o motorista só vai ter a sua carteira suspensa se atingir mais de 194 km/h. Estão estimulando a velocidade - disse Rizzotto, que descarta a tese de que o caos aéreo empurrou para as estradas mais carros, o que explicaria o aumento dos acidentes no feriado de Natal.

- O total de passageiros da malha aérea não chega a 5% das viagens realizadas em terra - diz ele.