Título: Uma nova etapa para crimes da ditadura
Autor: Carvalho, Jailton de
Fonte: O Globo, 27/12/2007, O Mundo, p. 28

Caso pode estimular investigação sobre real extensão de parceria entre regimes.

Abre-se uma nova etapa na história das ditaduras militares da América do Sul com o processo em Roma sobre o desaparecimento de 25 descendentes de italianos. O mandado de prisão para 140 militares de Brasil, Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Peru pode estimular governos, como o brasileiro, a esclarecerem um pedaço da história nacional ainda encoberto pelo silêncio oficial: a real extensão da colaboração entre os regimes militares da região.

Há indícios de associação criminosa no caso de Horacio Campiglia, nascido em Buenos Aires, filho e neto de italianos.

Quando o jato da Varig taxiou na pista do Galeão, vindo de Caracas naquele 12 de março de 1980, os militares brasileiros sabia tudo sobre o "alvo": Jorge Piñero era o nome no passaporte falso de Campiglia. Viajava na companhia de Monica Binstock. Eram montoneros - grupo cujo extermínio era prioridade absoluta da ditadura argentina.

Foi discreta a prisão e a entrega do casal ao "Grupo de Tarefas Nº 2" do Batalhão 601 de Inteligência argentino.

Nas horas seguintes, o Rio foi palco da cumplicidade entre os governos dos generais João Figueiredo, no Brasil, e Jorge Videla, na Argentina. Campiglia e Binstock eram conduzidos a um centro de torturas em Buenos Aires, enquanto simulava-se um registro em hotel carioca.

O disfarce não impediu que a notícia da prisão chegasse aos amigos do casal. Recorreram a dom Eugenio Sales, responsável por uma rede de proteção a perseguidos políticos. Hábil e corajoso, dom Eugenio mantinha um conjunto de 80 apartamentos, alugados do próprio bolso, para esconder refugiados. Ele tentou intervir, mas era tarde.

Um irmão do presidente Figueiredo, o general Euclydes, comandava o I Exército. Tinha poder efetivo sobre a Polícia Federal, chefiada por Agnelo Britto, a Secretaria de Segurança estadual, do general Edmundo Murgel, e a Polícia Militar, do coronel Aníbal Henriques.

Menem pediu a FH reconhecimento de 3 casos

No seqüestro de Campiglia e Binstock, eles se associaram ao general Cristino Nicolaides, do III Exército argentino, e ao coronel Cabrera Carranza, chefe de Inteligência do batalhão - personagens cuja reputação sanguinária está assentada em depoimentos de sobreviventes da tortura na ditadura argentina.

Há três décadas, as famílias de Campiglia e Binstock, assim como as de outros argentinos desaparecidos no Brasil (como Lorenzo Viñas que sumiu na alfândega de Uruguaiana, e Ernesto Ruggia, na região de Foz do Iguaçu), esperam respostas do Brasil. Em 1996, o então presidente argentino, Carlos Menem, pediu ao presidente Fernando Henrique Cardoso o reconhecimento formal do desaparecimento de três (Campiglia, Viñas e Mónica Pinus). Um mês depois, FH respondeu indicando a inviabilidade jurídica do pedido - os seqüestros ocorreram em períodos não cobertos pela lei de indenizações. Mas tarde, a Justiça brasileira acabou reconhecendo alguns dos casos.

Um manto de obscuridade prevalece sobre a história da cooperação brasileira com ditaduras vizinhas. Alguns fatos começaram a emergir de processos recentes, na Argentina, estimulados pelo governo Kirchner. Com a decisão da Justiça italiana, o passado volta à mesa de trabalho presidencial em Brasília. Agora, a investigação só depende do governo Lula.