Título: Família denuncia assassinato de João Goulart por envenenamento
Autor: Anderson, Carter
Fonte: O Globo, 12/01/2008, O País, p. 8

Filho de ex-presidente mostra provas de que seu pai era vigiado pelo SNI.

A família do ex--presidente João Goulart entrou com ação na Procuradoria Geral da República em que pede a investigação sobre o suposto complô que teria levado ao assassinato por envenenamento do ex-líder petebista, deposto em 1964 e morto no exílio, na Argentina, em 1976. No pedido, consta uma entrevista feita pelo filho de Jango, João Vicente Goulart, com o uruguaio Mario Neira Barreiro, de 53 anos. Preso no presídio de segurança máxima de Charqueada, na Região Metropolitana de Porto Alegre, por roubo, formação de quadrilha e posse ilegal de armas, Barreiro narrou a João Vicente, durante quase três horas - em entrevista gravada - seu trabalho como agente de inteligência do governo uruguaio, nos anos 70.

Na entrevista, Barreiro detalhou a Operação Escorpião, que teria levado ao assassinato:

- Não me lembro se colocamos no Isordil, no Adelpan ou no Nifodin. Conseguimos colocar um comprimido nos remédios importados da França. Ele não poderia ser examinado por 48 horas, aquela substância poderia ser detectada - contou Barreiro, que disse ter militado na "Juventude uruguaia de pé", movimento estudantil de direita, aderindo depois ao Grupo Gama, o serviço de inteligência uruguaio.

Corpo de Jango não passou por autópsia

Jango morreu na madrugada de 6 de dezembro de 1976, oficialmente de ataque cardíaco, aos 57 anos, na Fazenda La Villa, de sua propriedade, na cidade argentina de Mercedes. O corpo do ex-presidente foi enterrado em São Borja, sua cidade natal, no Rio Grande do Sul, sem passar por autópsia. Há seis anos, uma comissão externa da Câmara dos Deputados investigou a morte de Jango, sem chegar a uma conclusão.

Os detalhes do cotidiano de Jango e da família, descritos por Barreiro, impressionaram o filho do ex-presidente:

- O depoimento do Mario Neira é, indubitavelmente, real para a família, no que se refere aos números de telefone, aos fatos, às circunstâncias e às pessoas que conosco conviveram; lugares a que fomos ou deixamos de ir; conversas que somente nós sabíamos; enfim veio a corroborar que havia escutas, havia monitoramento da família. De outra forma, ele não poderia ter este conhecimento.

Segundo João Vicente, Jango, que era cardiopata, recebia remédios para o coração da França e freqüentava o Hotel Liberty, em Buenos Aires, onde a família passou a morar, após deixar o Uruguai. Segundo Barreiro, as cápsulas envenenadas foram postas em frascos de remédios enviados da França para serem entregues, no hotel, a Jango. Para envenenar Jango, contou Barreiro, um agente foi infiltrado como funcionário do hotel.

Médico uruguaio teria preparado veneno

Barreiro não soube especificar a substância usada. Disse que se tratava de um cloreto desidratado num autoclave (esterilizador). O veneno, afirmou, foi preparado pelo legista uruguaio Carlos Miles. Segundo Barreiro, o médico foi morto como queima-de-arquivo, após ter ameaçado contar o que sabia, se não fosse nomeado para um cargo público.

O depoimento integra o pedido de abertura de inquérito, protocolado pela família de Jango no Ministério Público Federal em 8 de novembro do ano passado. Segundo Barreiro, Jango começou a ser vigiado no Uruguai pelo serviço de inteligência daquele país na operação batizada de Escorpião.

Barreiro já falara sobre sua participação na morte de Jango ao jornal uruguaio "La República", em 2002, sem dar detalhes. Em 2007, o Instituto Presidente João Goulart, presidido por João Vicente, e a TV Senado produziram um documentário, ainda não concluído, sobre Jango.

- Fui entrevistá-lo com uma equipe da TV Senado, sem me identificar. Só no meio da entrevista disse quem eu era. Foi com muita dor que ouvi ele dizer o que fez, mas, mesmo assim, pedi à Procuradoria Geral que ele seja protegido. Ele é um arquivo vivo - diz João Vicente.

No depoimento, Barreiro narra a cooperação dos serviços de inteligência uruguaio e brasileiro. João Vicente fez a entrevista em outubro de 2006, mas não quis divulgá-la até que fosse possível cruzar o depoimento com dados que confirmassem as operações descritas por Barreiro.

O uruguaio também já havia sido entrevistado, em 2002, pelo escritor Carlos Heitor Cony e pela jornalista Ana Lee, para o livro "Beijo da morte", mas não forneceu provas de que participou da suposta operação contra Jango. No entanto, para João Vicente, documentos revelados posteriormente deram credibilidade ao que Barreiro contou.

- Surgiram depois informações sobre o serviço secreto do Itamaraty, e a colaboração entre esse serviço e os de outros países, que dão veracidade ao que ele disse. Essa colaboração já existia antes da Operação Condor - diz João Vicente, sobre a ação das forças repressivas dos países do Cone Sul, que levou à morte de opositores dos regimes militares nos anos 70 e 80.

Fotos do SNI comprovam que Jango era vigiado

João Vicente refere-se à divulgação de documentos sobre o Centro de Informações do Exterior, o serviço secreto do Itamaraty criado nos anos 60 e que vigiava os exilados brasileiros. Ano passado, a família Goulart recebeu do governo federal sete mil documentos do extinto Serviço Nacional de Informação (SNI), incluindo fotos da festa de aniversário de Jango em 1975, na Fazenda Maldonado, no Uruguai - prova de que Jango era vigiado.

- Espero que o Ministério Público do meu país tenha a grandeza e a coragem de abrir a investigação sobre a morte de meu pai e o aparelhamento do Estado, abrindo os arquivos que ainda escondem a verdade dos brasileiros - diz João Vicente.

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