Título: Pobre dicionário
Autor: Buaque, Cristovam
Fonte: O Globo, 19/01/2008, Opinião, p. 7

Nesta semana, o Canal Brasil exibiu o clássico filme "Jango", de Silvio Tendler. Nele, percebe-se que as forças progressistas defendiam o voto do analfabeto, mas não a erradicação do analfabetismo. O voto do analfabeto era parte das reformas de base; as outras diziam respeito à propriedade dos meios de produção e à intervenção do Estado na economia. São poucas as referências a transformações sociais diretas: saúde, moradia, água e saneamento, transporte público, educação. A falha não era de Jango, mas da visão importada pela esquerda brasileira, segundo a qual o progresso era efeito direto da economia, e a emancipação do povo e o atendimento das necessidades dos pobres eram conseqüência do crescimento econômico.

Até Lula chegar ao poder, as reformas defendidas pela esquerda eram as mesmas: controlar o sistema financeiro, opor-se a todo tipo de privatização e ampliar a intervenção do Estado na economia, combater o FMI e o Plano Real, distribuir terra, mesmo que produtiva, e defender o fim de programas como a Bolsa-Escola, chamados de política compensatória.

Mas quando assumiu o governo, a esquerda deu uma guinada: adotou integralmente a política econômica do governo Fernando Henrique e desvirtuou a Bolsa-Escola, transformando-a em programa puramente assistencial, com o nome de Bolsa Família. O discurso tornou-se conservador, e passou a defender políticas compensatórias como carro-chefe e símbolo do discurso progressista. Trocou revolução por generosidade.

Abandonou as bandeiras anteriores e não adotou novas. Continuou sem perceber que a verdadeira revolução possível e necessária está na garantia de acesso de todos à escola de máxima qualidade. A revolução não está mais em garantir ao operário a propriedade do capital do patrão, mas sim em assegurar que o filho do operário estude na mesma escola que o filho do patrão.

Além de estar presa ao discurso economicista, nossa esquerda considera esse sonho utópico, impossível. Ela prefere os pequenos gestos políticos e econômicos às decisões fortes, com impacto direto na realidade social. Nos anos 60, garantir voto ao analfabeto era um ato politicamente progressista; mas a erradicação do analfabetismo seria um gesto socialmente emancipador. Hoje, em vez de escola com qualidade para todos, uma política transformadora e emancipadora, prefere-se a política da generosidade, enquanto o crescimento econômico não chega a todos.

A esquerda já foi abolicionista, desenvolvimentista, socialista, comunista, reformista, nacionalista e internacionalista, mas nunca se assumiu educacionista, como venho propondo. Jamais viu a educação como vetor da transformação social. Palavras como educacionismo e educacionista nem sequer constam dos dicionários.

A realidade socioeconômica de hoje exige a adoção destes termos: educacionismo, para definir o progresso e a transformação social com base em uma revolução na educação que assegure a máxima qualidade, para todos; e educacionista, para definir aqueles que defendem a necessidade de uma revolução social pelo educacionismo. Educador é o especialista em educação que usa seu conhecimento para formar e transmitir conhecimento; educacionista é o militante político que luta para que todos os habitantes do país tenham educadores competentes em escolas com a máxima qualidade.

O desenvolvimentismo e o socialismo de hoje consistem no educacionismo: assegurar a mesma chance para todos, por meio de uma revolução educacional no país. Esse é o caminho possível.

Mas faltam os educacionistas. Faltam os cidadãos, como foram os abolicionistas, capazes de se unir, independentes de sigla partidária, para defender que a revolução é necessária, possível, e que o caminho é a escola igual para todos. Mas como criar uma consciência educacionista, quando o educacionismo nem está nos dicionários?

Talvez a culpa seja dos pobres dicionários, e não dos líderes sem imaginação que, há 50 anos, preferem defender o voto dos analfabetos a defender a erradicação do analfabetismo.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).