Título: Pouco durmo. Por mim, não haveria noite
Autor: Gripp, Alan
Fonte: O Globo, 20/01/2008, O País, p. 14

Após polêmica sobre a Amazônia, Mangabeira Unger diz estar ansioso para ver ações de longo prazo concretizadas

MANAUS. Quando o ministro de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, recebeu O GLOBO para a entrevista no seu quarto de hotel em Manaus, já havia completado 72 horas de sua peregrinação pela Amazônia. Mas a expressão de cansaço logo desapareceu quando começou a defender suas idéias de longo prazo. Entusiasmado, contou que trabalha para que o governo federal assuma até 10% das matrículas nas escolas do ensino médio do país, que serviriam como "um modelo nacional". Defendeu uma política armamentista para o Brasil, mesmo considerando o país o mais pacífico do mundo.

- Os leigos precisam andar armados - justificou.

E disse que quer apresentar a Lula uma proposta de reforma política. Sobre a polêmica em torno de suas idéias para a Amazônia, Mangabeira disse que nunca evitou controvérsias, mas afirmou que a proposta de uma aqueduto ligando a Amazônia ao Nordeste foi mal-entendida. O ministro também falou sobre sua ansiedade para assistir à primeira ação de longo prazo concretizada e disse que, por isso, pouco dorme.

- Por mim, não haveria noite.

Alan Gripp

O senhor ficou satisfeito com o resultado de sua viagem à Amazônia?

MANGABEIRA UNGER: Estou muito animado. Sinto que, na Amazônia, o Brasil tem a melhor oportunidade de se redescobrir e se reorganizar. Tenho dito que a Amazônia não é retaguarda, é vanguarda. É o nosso grande laboratório. A nação acorda para a centralidade desse tema para o nosso futuro.

O que achou da polêmica em torno de algumas idéias suas de longo prazo?

MANGABEIRA: É natural. Ao assumir essa tarefa no governo, tomei uma decisão crucial: focar a primeira fase do meu trabalho num elenco de iniciativas que encarnem esse novo modelo de desenvolvimento. Se eu não fizesse isso, arriscaria ficar no papel todo o trabalho, como palavras vãs. O que muda o mundo é a combinação de iniciativa e mensagem. Decidi organizar o trabalho em torno de iniciativas em quatro grandes áreas: oportunidade econômica, oportunidade educativa, Amazônia e Defesa. Em cada uma delas, minha aspiração é ajudar não apenas um projeto de governo mas também um projeto de Estado, que possa ter uma vida mais longa do que a do atual governo.

O senhor trouxe para a Amazônia propostas prontas em um documento...

MANGABEIRA: Tomei uma segunda decisão quanto ao método: preferi ser imprudente a ser evasivo. Não me conduzi como um político, procurando evitar riscos e controvérsias. Minha preocupação foi provocar e organizar uma discussão nacional. Nesse espírito comecei a escrever e a divulgar textos, que não representam uma posição oficial do governo, nem sequer de minha pasta. Eles colocam hipóteses, conjecturas, possibilidades. Precisamos perder o medo das idéias. Só elas nos libertarão. É fácil ser realista quando se aceita tudo, e é fácil ser visionário quando não se enfrenta nada.

A proposta do aqueduto ligando a Amazônia é para valer?

MANGABEIRA: É um tema inteiramente acessório no conjunto de minha proposta. Meu projeto está centrado no zoneamento econômico e ecológico, permitindo estratégias distintas para a Amazônia já desmatada e para a Amazônia florestada. Em relação à água, houve um mal-entendido, uma falsa controvérsia. Na região do mundo que mais tem água, que é a Amazônia, paradoxalmente, falta água para os habitantes. A primeira tarefa é garantir água confiável para os cidadãos da Amazônia. O que eu disse de passagem é que, ao resolver esse problema, a Amazônia, numa etapa subseqüente e com uma tecnologia ainda a desenvolver, poderá ajudar a resolver o problema da falta de água na região vizinha ao semi-árido. Mas essa não é uma tarefa prioritária. Vamos focar o essencial.

Já há propostas de defesa nacional?

MANGABEIRA: Não há estratégia de desenvolvimento nacional sem estratégia de defesa. O presidente Lula compreendeu isso e instituiu por decreto um comitê ministerial para formular essa estratégia - presidido pelo ministro Nelson Jobim (Defesa) e coordenado por mim - e nos deu até 7 de setembro de 2008 para propor essa estratégia. Nunca tivemos no Brasil, nunca, nunca, nunca, uma discussão nacional a respeito de nossa defesa. Aí está uma questão emblemática e definitiva. Se nos levamos a sério ou não. Se queremos construir um caminho nacional, precisamos ter um escudo de defesa. Não há país no mundo mais pacífico do que o Brasil, mas no mundo em que vivemos, em que a intimidação ameaça tripudiar sobre a cultura, os leigos precisam andar armados.

E como isso se dará?

MANGABEIRA: Um dos temas centrais é a reorganização das Forças Armadas em torno de uma vanguarda tecnológica e operacional, baseada em capacitações nacionais. Outro tema igualmente importante é estabelecer a causa de defesa no imaginário nacional como uma causa de todo o país.

O país precisa de armamento moderno?

MANGABEIRA: A primeira preocupação é definir a tarefa das Forças Armadas numa série de circunstâncias específicas de base de guerra e os equipamentos são uma consequência dessa posição. Não seremos os mais poderosos, sejamos os mais inteligentes e ousados.

A violência nas capitais não merece ações de longo prazo?

MANGABEIRA: Sem dúvida, mas não está ainda no elenco das questões que eu escolhi como objetivos iniciais.

As ações na educação estão definidas?

MANGABEIRA: São três as iniciativas que estou focando. A primeira é uma rede de escolas médias federais. Precisamos substituir o ensino enciclopédico e informativo por um analítico e capacitador. Além disso, construir um novo modelo de relação entre o ensino geral e o ensino técnico e profissional. Hoje, no mundo, não faz mais sentido só ministrar o ensino tradicional, de ofícios rígidos. A evolução das economias caminha numa direção que exige do trabalhador do futuro o domínio de capacitações genéricas. Não queremos no Brasil ter uma divisão rígida de ensino generalista para as elites e especialista para as massas. A responsabilidade principal pelo ensino médio é dos estados federativos, mas a meta federal seria ocupar algo como 10% das matrículas.

Mas como conciliar a gestão local das escolas com padrões nacionais de qualidade?

MANGABEIRA: É muito simples. A qualidade do ensino que uma criança recebe não deve depender do acaso do lugar que ela nasce. Precisamos de três instrumentos: um sistema nacional de avaliação, e nisso estamos avançados; um mecanismo para redistribuirmos recursos e quadros de lugares mais ricos para lugares mais pobres, e nisso começamos a avançar; e um procedimento para associar os municípios, estados e o governo federal que possam ir em socorro de um município que não tenha conseguido atingir os mínimos.

Quando sairá do papel a primeira ação de longo prazo?

MANGABEIRA: Não seria realista ou responsável eu fixar datas. Posso dizer que estou ansioso, pouco durmo. Para mim, cada dia, cada hora, conta. O meu temperamento é o da mobilização total. Se fosse por mim, não haveria noite. Mas os meus concidadãos não pensam assim. Então, tenho que dançar conforme a música (risos).

O senhor, que foi um crítico severo do governo Lula, que avaliação faz de dentro?

MANGABEIRA: Fui um crítico severo no primeiro mandato. Não foi fácil para o presidente me fazer o convite, e não foi fácil para mim aceitar. Prevaleceu o nosso compromisso com o futuro. Sinto que o presidente muito encarna o Brasil. O Brasil aberto, inquieto, sem preconceito. Às vezes, quando falo com ele, sinto que estou falando com o Brasil. Eu sou eu, passei minha vida toda brigando, doutrinando, aguçando divisões. Agora, tenho que me transformar. Quando o presidente me convidou, ele me disse que eu tinha 30 dias para adquirir a argúcia política. O meu prazo acabou há muito tempo. Agora, estou aqui na Amazônia fazendo essa pregação. É uma coisa estranha. Outro dia disse que eu sou um homem sem charme num país de charmosos.

O senhor se chateia quando o chamam de gringo ou fazem piada de seu sotaque?

MANGABEIRA: Não. Acho que o que estou fazendo agora é um sonho. Todas essas resistências vão sendo debeladas pouco a pouco. E são nada em comparação com a generosidade de que me sinto beneficiário.

Por cargos, o PMDB se rebelou no Senado e derrubou a criação de sua pasta. Agora, fez o mesmo para ganhar o comando do Ministério de Minas e Energia. Essa sanha por cargos prejudica quanto?

MANGABEIRA: Não escolhi a reforma política como uma das iniciativas às quais me dedico. Mas não vou mentir: a mudança das nossas instituições políticas é essencial. Na história moderna, os países não mudam suas instituições por concluírem que um regime político é melhor do que o outro. Mudam quando precisam mudá-las para sobreviver, respirar. A mudança das instituições no Brasil só pode ocorrer no contexto de uma luta para reorientar nosso caminho econômico e social. Eu, adiante, pretendo propor ao presidente e ao governo uma iniciativa no campo da reforma política.

Como seria?

MANGABEIRA: Há um consenso emergente de que a primeira tarefa é separar a política da sombra do dinheiro. E não é um mistério quais são as iniciativas a tomar. Fidelidade partidária, financiamento público das campanhas, substituição da maioria dos cargos comissionados por carreiras de Estado e revisão do processo orçamentário.