Título: Surto elétrico
Autor: Doca, Geralda; Paul, Gustavo
Fonte: O Globo, 20/01/2008, Economia, p. 34

Se todo consumidor brasileiro reduzisse em 5% o seu consumo de energia, isso permitiria ao Brasil poupar 2.500 MW de energia. É o mesmo que o país conseguirá se fizer o que o governo ameaça: retirar gás das indústrias para mandar para as termelétricas. Em vez de fazer o mais sensato, iniciar uma campanha de economia de consumo, o governo ameaça as empresas.

É lamentável a maneira como o governo lida com a séria questão da crise energética! O ministro Edison Lobão tartamudeou na primeira entrevista que deu ao tentar falar a palavra "térmica". Falou em "termas", tentou "termos" e não encontrou as "térmicas", nome dado às usinas que, no nosso modelo, são a variável de ajuste.

O governo tem feito contorcionismos com os números só para não admitir que o país corre risco de falta de energia. Sustenta, por exemplo, que o consumidor residencial tem mantido quase o mesmo cuidado da época do apagão. É falso. Na verdade, o consumo total subiu 32% desde 2001. E aumentou 5,4% no ano passado. O truque é que ele calcula pelo consumo médio por família, que foi de 135 kwh para 147 kwh. Mas esta forma de fazer a conta mostra um crescimento atenuado, porque entraram mais famílias de baixo consumo, com o Luz para Todos. Só em 2007, entraram quase dois milhões de novos consumidores. No agregado, o consumo residencial hoje cresce mais que o industrial.

O nível dos reservatórios está baixo. As térmicas estão instaladas, mas não têm gás. Para fornecer mais gás a elas, é preciso tirar de indústrias. Isso é fácil falar; difícil fazer. De início, é preciso entender um detalhe fundamental: no balanço energético do país, não vale o que está escrito.

- O balanço energético do país está maquiado. Estão mentindo quando dizem que temos toda aquela energia, porque, dos 40 milhões de metros cúbicos de gás necessários para fazer todas as térmicas funcionarem, só temos 10 milhões. O setor tem de estar preparado para quando a chuva não vem. Se trabalhamos com balanço maquiado, em que a oferta de energia não é a oferta real, não nos preparamos para este momento em que a chuva é escassa e não poupamos água no reservatório - diz Marco Tavares, da Gás Energy.

Outra coisa: tirar o gás da indústria para passar para as térmicas é complexo.

- Essas indústrias fizeram enormes investimentos para passar a usar gás e estão pagando o preço cheio, ou seja, pagam mais caro para ter a garantia de que o fornecimento não será interrompido. Se ele for interrompido, então o preço pago deveria ter sido mais baixo. Isso pode gerar demandas judiciais. E para fazer a troca de fonte de energia é preciso pedir licença ambiental - explica Paulo Mayon, presidente da Associação dos Grandes Consumidores.

O presidente de uma indústria com unidades no Rio e em São Paulo, que usa gás como fonte de energia, está bastante preocupado. Na época do apagão, ele transformou toda sua indústria para o gás e agora é considerado "dependente".

- Um forno desses não se muda em menos de um ano. E mesmo uma solução provisória demora uns 10 meses. O custo pode chegar a US$30 milhões por forno. Isso se tivermos licença ambiental - diz.

Fernando Rei, presidente da Cetesb, órgão que fiscaliza a poluição em São Paulo, explica que as empresas que têm licença para bicombustível não têm com o que se preocupar. Podem alterar o combustível. Mas as que só estão autorizadas a usar gás teriam de pedir nova licença ambiental. E se elas estiverem numa "bacia aérea" saturada, podem ter muita dificuldade em conseguir a licença.

Paulo Mayon reúne as empresas que compram energia no mercado livre. Há um ano, elas pagavam R$28 por MW de energia extra e hoje pagam R$600. Ele acredita que pode ser feito um plano que dê benefício às residências que reduzirem o consumo:

- O consumidor reduziria o uso e receberia um subsídio da indústria por isso. Para a indústria, seria um grande negócio, porque pagaria menos do que paga agora pela energia extra. Para o consumidor, seria uma vantagem também, e o país estaria deslocando energia de quem não produz para quem produz. Com um esforço mínimo, cobriria o déficit e evitaria o racionamento - afirma.

- O governo trata a racionalização de energia como se fosse um palavrão. E é fácil reduzir. Com 5% de queda, o país estaria poupando os 12 milhões de metros cúbicos de gás que conseguirá apenas se tirar da indústria, desorganizando a economia - diz Marco Tavares.

Tudo está errado, há muito tempo, sobre o gás. No fim da época do apagão, o setor descobriu que tinha gás para mover as térmicas, mas, naquele momento, havia energia sobrando. O governo Lula foi claro e disse que não estava interessado em nada que não fosse energia hidrelétrica. Os fornecedores, como a Repsol e a própria Petrobras, foram então vender para as indústrias. Elas mudaram sua estrutura de produção - alguns setores são hoje inteiramente dependentes do gás, como a fabricação de cerâmica e a de vidro. Neste meio tempo, o governo pôs as hidrelétricas para operar no máximo, sem fazer um mix que permitisse poupar água nos reservatórios. Quando surgiu, agora, um verão de pouca chuva, já foi o suficiente para o país entrar nesse estresse. Mesmo se o Brasil conseguir atravessar este ano sem racionamento, ele dificilmente deixará de acontecer no ano que vem, na opinião de Mayon e Marco Tavares.