Título: Um pedido a Lula, em nome do Quênia
Autor: Magalhães-Ruether, Graça
Fonte: O Globo, 20/01/2008, O Mundo, p. 42

Nobel da Paz diz que única maneira de combater violência em seu país é mediar conversações entre governo e oposição.

BERLIM. Wangari Maathai, 67 anos, Nobel da Paz de 2004, diz que a União Africana vai apelar ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, "um grande amigo da África", por ajuda num diálogo entre o líder da oposição queniana, Raila Odinga, e o presidente, Mwai Kibaki. Em entrevista ao GLOBO por telefone, de Nairóbi, a ex-ministra do Meio Ambiente do Quênia diz esperar ajuda também do pré-candidato democrata à Casa Branca Barack Obama, filho de queniano. "Vivemos uma tragédia nunca vista no país, e receio que o clima de violência contamine outros países africanos", desabafou ela, conhecida como "a voz verde da África". Maathai pertence à etnia quicuio - vítima de grande parte dos ataques atuais no Quênia, perpetrados pela etnia rival luo.

Graça Magalhães-Ruether

O que na sua opinião deve ser feito para acabar com a violência no Quênia?

WANGARI MAATHAI: O único meio de acabar com a violência no país é conseguir pôr o presidente Mwai Kibaki e o candidato da oposição Raila Odinga em uma mesa de negociações. Eu apelo à comunidade internacional para que use todo seu poder de influência para pressionar os dois e acabar, assim, com o derramamento de sangue. Já chegaram a Nairóbi a moçambicana Graça Machel, esposa do ex-presidente africano Nelson Mandela, e Benjamin Mkapa, ex-presidente da Tanzânia. Eles aguardam a chegada do ex-secretário geral da ONU Kofi Annan, que vai tentar uma negociação. Mas eu gostaria de apelar também aos amigos do nosso país e da África para que ajudem. Refiro-me ao presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, que tive a honra de conhecer por ocasião de um encontro em Brasília, uma cidade linda, em 2005. A União Africana poderá pedir a ajuda do presidente Lula, que é um grande amigo da África.Também o politico americano Barack Obama, filho de um queniano e admirado aqui por todas as etnias, poderia exercer pressão sobre os dois grupos rivais (quicuio e luo).

O pré-candidato democrata à Casa Branca Barack Obama é descendente de uma família de luos. Ele é aceito com simpatia também pelas outras etnias?

MAATHAI: Obama é um grande amigo do Quênia. Ele é aceito e admirado por todas as etnias e enviou ao nosso país uma mensagem, apelando pela reconciliação e o diálogo. Ele lembrou que os valores democráticos devem ser respeitados, quer dizer, o resultado da votação deveria ser respeitado.

Por que a senhora abandonou o governo do presidente Mwai Kibaki?

MAATHAI: Eu fiz parte desse governo mais deixei de apoiá-lo. As causas da crise de hoje já começaram há muitos anos. Kibaki e Odinga foram no passado aliados. Os dois lutaram juntos para derrubar o governo do então presidente Daniel Arap Moi. Odinga apoiou Kibaki, que venceu a eleição. Mas o presidente Kibaki não cumpriu a sua promessa, de indicar Odinga para primeiro-ministro. Ele traiu assim os quenianos, que o elegeram porque queriam uma mudança no país, um governo com representantes das duas principais etnias, os quicuios e os luos. Hoje Kibaki está isolado, porque cometeu muitos erros. Eu deixei o governo porque a sua política causou uma divisão dramática do pais. Além disso, tive divergências com o presidente no que se refere ao projeto de uma nova Constituição, que daria a ele mais poderes.

Raila Odinga acusa Kibaki de fraude eleitoral. A senhora concorda com ele?

MAATHAI: Não sei se houve ou não fraude. A comissão eleitoral cometeu o grande erro de ter demorado bastante para anunciar o resultado e todo o processo ocorreu de uma forma misteriosa, sem transparência, criando um clima de enorme desconfiança no país.

A senhora vê ainda como possível um acordo entre Kibaki e Odinga?

MAATHAI: O problema é que Odinga se recusa a participar de um governo porque julga que ele ganhou e Kibaki perdeu a eleição. Da minha parte eu diria: não sabemos quem ganhou. Mas os dois poderiam chegar a um acordo para acabar imediatamente com o conflito, que ameaça dividir o país. Eles poderiam sentar em uma mesa de negociação e planejar um passo seguinte, como a realização de novas eleições. Já com o início do diálogo seria possível acabar com o clima de ódio.

O conflito entre Odinga e Kibaki é determinado também pela rivalidade entre as duas principais etnias do pais?

MAATHAI: Em geral, há a tendência de se associar qualquer conflito na África ao conflito das etnias. Isso é um problema real no nosso continente. Mas a crise atual do Quênia é alimentada por dois focos de divergência. Trata-se de uma crise politica, de dois políticos e seus grupos que reclamam para si o poder. Se a senhora olha para o "pentágono", como é chamado o grupo do partido da oposição, Movimento Democrático Laranja (MDL), de Odinga, vê como os seus membros são todos de uma mesma tribo. Também o grupo de Kibaki é praticamente todo da etnia dos quicuios. Os dois grupos usam as animosidades que existem entre as etnias para tirar proveito político.

Como integrante da etnia dos quicuios, que têm sido perseguidos por outras etnias, a senhora tem medo da violência?

MAATHAI: Eu estou terrivelmente chocada com o que está acontecendo. Nunca julguei que isso fosse possível no Quênia, um país que havia aprendido nos últimos anos uma vida civilizada e a cultivar valores da sociedade civil. Estou muito frustrada e com muito medo que o conflito atual escale e transforme-se em guerra civil. Há uma escalada do ódio entre as etnias. Nós vivemos uma tragédia nunca vista antes no país e receio que o clima de violência contamine outros países africanos. Não esqueça que o Quênia era um dos países de melhor situação e estabilidade na África. Por isso, é ainda mais importante que a comunidade internacional pressione Kibaki e Odinga.

A senhora tem conseguido trabalhar na sua ONG, "O Cinturão Verdet", com a crise atual?

MAATHAI: Eu tento, mas é muito dificil. Minha organização fica numa rua que é palco de muitos confrontos. Muitos dos meus funcionários deixaram Nairóbi, para fugir da violência. Outros perderam suas casas. Todos estamos apreensivos com a situação. Os nossos projetos estão na maioria parados no momento.