Título: O Poder Legislativo e o tigre de Bengala
Autor: Corrêa, Maurício
Fonte: Correio Braziliense, 26/04/2009, Opinião, p. 17

Advogado

Regime democrático pressupõe a existência de três poderes de Estado. É inconcebível imaginá-lo sem o Poder Legislativo como não é possível compreendê-lo sem os Poderes Executivo e Judiciário. É rematado absurdo falar em democracia num país em que há domínio de um poder sobre os outros. Pode-se dizer, nesse caso, que se trata de regime de exceção e não de regime democrático. Em outras palavras, isso é ditadura. Não há democracia onde o Estado se organiza de forma estranha à tripartição de poderes. É da essência democrática que os poderes interajam harmônicos entre si.

Os instrumentos constitucionais de países democráticos definem os limites de atuação de cada um de seus poderes. O controle de funcionamento deles se efetiva pelo que a doutrina chama de freios e contrapesos. Tal conceito não deve ser entendido como mera formulação abstrata, mas como meio real de cumprimento dos institutos constitucionais. O sistema de freios e contrapesos visa, portanto, em última análise, materializar o respeito das áreas de ação dos poderes. Cada um deles atua dentro de fronteiras compartimentais próprias. Qualquer extrapolação dessas balizas se corrige com o emprego dos recursos de defesa contidos em previsão constitucional. A isso resumidamente, e grosso modo, se diz freios e contrapesos.

Nenhuma sociedade, tampouco a nossa, deve pretender a ruína dos poderes constitucionais. As críticas da mídia contra abusos de agentes políticos se conformam perfeitamente com o dever de informar. Isso se verifica em qualquer parte do mundo democrático. No caso específico do Brasil, em virtude dos últimos acontecimentos relacionados com o Poder Legislativo, é justificável afirmar que o poder se acha em um de seus piores níveis de crédito popular.

Raro é o dia em que os jornais não divulgam escândalos com passagens aéreas de quotas parlamentares. Não bastasse a onda de desprestígio do Congresso Nacional, acresce-lhe agora o envolvimento de parlamentares em mais essa derrocada. A prática não é mal apenas da presente legislatura. É desdobramento da falta de parâmetros para contenção do abuso, que estão a exigir imediato disciplinamento. A forma descomedida da emissão de passagens exibe, entre outros vícios conhecidos, a degradação do poder.

Se é ruim com o Legislativo, pior ainda seria sem ele. A ausência desse poder pode conduzir qualquer democracia, como em outras oportunidades já se deu conosco, à ditadura. Não existe coisa pior do que perder a liberdade e viver sob o jugo da prepotência. A imprensa perde o direito de informar, prisões são ordenadas sem culpa formada, e o direito de ir e vir das pessoas se sujeita à vontade do guarda da esquina. O Poder Judiciário se acocora, perde a independência de julgar, o habeas corpus e o mandado de segurança se desfiguram.

Para que não sucedam contratempos dessa ordem, nada melhor do que a imprensa ter plena liberdade de informar. Essa faculdade só existirá se as instituições democráticas forem preservadas. Tudo deve ser feito para estancar a onda de escândalos. Nada justifica que parlamentares se beneficiem de passagens para custear viagens de pessoas que nada têm a ver com suas atividades específicas. Impõe-se que todas as providências possíveis sejam tomadas para que se ponha cobro às anomalias. Não é concebível que a cobertura de gastos indevidos recaia sobre os ombros dos contribuintes já sacrificados com a crise econômica e com a montanha de tributos que suportam.

A crise de descrédito do Poder Legislativo faz lembrar a narrativa contada por Yann Martel no romance A vida de Pi. Conta o autor que a família de Pi administrava o zoológico da cidade de Pondicherry, na Índia. Entretanto, motivada pela instabilidade política em que vivia o país, se vira forçada a mudar para o Canadá. O navio em que viajavam, contudo, naufragou em águas encapeladas do Oceano Pacífico. Salvaram-se num bote salva-vidas apenas o garoto Pi, de dezesseis anos, uma hiena, um orangotango, uma zebra e um tigre de Bengala.

Não sendo possível haver uma linguagem comum entre os sobreviventes, não havia, consequentemente, conversa racional. Estabeleceu-se, porém, entre eles uma conjunção de interesses. A única coisa que restava a Pi era fazer com que o tigre entendesse que precisava dele para continuar vivo. O tigre necessitava do garoto para pescar, e com os peixes se alimentar, e de água doce extraída da chuva, para matar a sede. Da mesma maneira, Pi precisava do tigre vivo, pois esse era o único recurso de que dispunha para lutar pela sua própria sobrevivência.

Assim como não é possível descartar o regime democrático, uma vez que não se inventou outro melhor que o substitua, por óbvias razões não se pode abrir mão do Poder Legislativo. A sociedade tem de ficar de olho no comportamento dos parlamentares, e verificar quem quer que tudo continue como está e os que querem a moralização dos costumes políticos. O voto é o melhor remédio para o mal. Na ocasião certa, é separar o trigo do joio.

Como na história de Pi, não se pode abrir mão do Legislativo. É peça ínsita à democracia. Quem não se conformar com os novos tempos que volte para casa. Passagens para namoradas, amantes e companhia, nunca mais.