Título: Hitler é atual e universal
Autor: Magalhães-Ruether, Graça
Fonte: O Globo, 26/01/2008, História, p. 36

Conforme se aproxima o aniversário dos 75 anos da chegada de Adolf Hitler ao poder na Alemanha, requenta-se o argumento de que o nazismo é página virada e de que a fila da História precisa andar. Reclama-se também, com freqüência, que a memória de Hitler ora serviria apenas para bicar eternamente o fígado de novas gerações de alemães que nada têm a ver com os crimes de seus antepassados, ora serviria apenas de salvo-conduto para os desmandos do governo de Israel em Gaza, na Cisjordânia e no Líbano.

O primeiro e mais evidente problema desse tipo de alegação é tratar Hitler e o nazismo como um episódio do passado, morto em 1945, incinerado com os cadáveres do próprio Führer e de sua mulher Eva Braun, símbolo de uma nação que o seguiu cegamente. O segundo é tratá-los como um assunto que hoje diria respeito tão-somente a alemães e judeus. Isso não é verdade. O austríaco nascido na fronteiriça Braunau am Inn em 1889 desencadeou uma guerra que matou mais de 50 milhões de pessoas. Ele mudou o mundo.

Hitler, portanto, é atual e universal. Não só porque há grupos neonazistas ativos planeta afora, inclusive, surpreendentemente, na Rússia e em Israel. Não só porque ilustra a discussão filosófica sobre o Mal. E sim porque encarna questões presentes no noticiário contemporâneo, dos EUA ao Afeganistão, passando (não só) pela Venezuela: o paradoxo democrático ¿ como impedir que o sistema seja usado a favor de quem o quer destruir? ¿ e a confusão entre política e religião ¿ tão diferentes quanto negociação e dogma podem ser.

O Führer não chegou ao poder dando um golpe de Estado, mas pelas brechas de uma democracia parlamentar. Dez anos antes, em 1923, houve uma tentativa de golpe, o ¿Putsch da cervejaria¿, em Munique. O pouco tempo na prisão foi o suficiente para Hitler escrever ¿Minha luta¿, que antecipava para quem quisesse ler o ódio aos judeus e o clamor por ¿espaço vital¿ para a Alemanha. Libertado, ele foi tratado como excentricidade útil pelos políticos tradicionais de centro-direita, que julgavam poder manipulá-lo. Um deles, em particular, o aristocrata Franz von Papen, tornou-o atraente aos olhos do empresariado.

Paralelamente, Hitler cativou o eleitorado inventando grandes inimigos para o povo alemão: banqueiros judeus e operários comunistas. Na última votação livre, realizada em julho de 1932, os nazistas conseguiram 37% das cadeiras do Parlamento, o que, se não lhes permitia formar sozinhos um gabinete, tornava-lhes uma força expressiva, a ser cortejada. Foi em coligação com outro partido de direita, e tendo Von Papen ao seu lado, que Hitler tornou-se primeiro-ministro do marechal Paul von Hindenburg, que morreria em 1934.

O governo consolidado a partir daí não era formalmente uma teocracia, lógico. Entretanto, como em qualquer regime, de direita ou de esquerda, no qual se estabeleça um culto à personalidade, a política ganhou ares de religião. Nos grandes comícios nazistas, Hitler estetizava a política como ópera e a ritualizava como missa. Aliás, tal qual a maioria dos austríacos e grande parte dos alemães, tal qual Von Papen, Hitler tivera uma formação católica, o que, à época, praticamente implicava o anti-semitismo a partir da velha acusação de que os judeus teriam assassinado Jesus (cega até ao fato de que Jesus era judeu).

Em ¿Minha luta¿, Hitler escrevera: ¿Hoje acredito que estou agindo de acordo com a vontade do Criador Todo-Poderoso: ao me defender do judeu, estou lutando pela obra do Senhor.¿ Seja como for, o Führer contou com a conivência do alto clero alemão e com a admiração de Eugenio Pacelli, eleito papa Pio XII pelo colégio de cardeais em 1939.

Quando numerosos fiéis das três grandes religiões monoteístas ainda se baseiam em interpretações mais ou menos literais de livros escritos noutro mundo ¿ o de milhares de anos atrás, no mínimo ¿ a fim de impor políticas de Estado neste mundo, nenhum personagem que tenha usado elementos de uma esfera na outra, seja ele crente ou ateu, seja Torquemada ou Hitler, Stálin ou Mao, pode ser considerado página virada na História.

ARTHUR DAPIEVE é colunista do GLOBO