Título: A vala dos não-humanos
Autor: Rosiska Darcy de Oliveira
Fonte: O Globo, 27/01/2008, Opinião, p. 7

Uma parte da população brasileira habita a vala dos não-humanos. É a lição da inacreditável história de uma jovem de 15 anos, largada como um bicho na cela de presidiários, a quem servia como pasto há vários dias, sem que nenhum agente público impedisse a bestialidade da situação.

Misturaram-se ali ingredientes de um Brasil bruto e medieval e veio à tona muito do que despreza: uma jovem, delinqüente, presidiária. Para esse Brasil o corpo da menina não vale nada, é menos que nada, uma fera jogada a outras feras, pouco importando à autoridade pública o que pudesse lhe acontecer. Contra ela nada é crime, quantos estupros se queira, já que pertence à categoria dos que são jogados na vala dos não-humanos.

Cúmulo da ironia, tudo isso se passa nas vésperas do Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher em um estado governado por uma mulher. Várias outras mulheres envolvidas, delegada, juíza, mostraram igual incúria e indiferença. Moral ou imoralidade da história, antes dos presos, quem primeiro estuprou a jovem foi o poder público. Fica abalada a convicção de muitas de nós de que as mulheres no poder fariam uma diferença.

O corre-corre que se segue sempre aos escândalos desvenda a situação degradante, mas não responde à perplexidade dos que perguntam: como é possível que isso possa acontecer? A resposta é pronta: acontece e muito e em vários lugares do Brasil. Assim, como uma constatação, algo que se lamenta, mas que é assim.

Responsabilidades? Perdem-se nas cadeias hierárquicas, nas querelas de jurisdições. Quem sabe, discutiremos se o estupro é federal ou estadual? Num gesto teatral, detona-se o prédio. O que equivale a, como na anedota, tirar o sofá da sala.

Para além da brutalidade do fato em si, esse episódio é um revelador de uma cultura política da impostura que vem se fortalecendo. A pretexto de encarar a verdade, por exemplo, o inferno carcerário que existe em todo o país, essa verdade passa a se justificar a si mesma numa circularidade que se auto-absolve. O que aconteceu se deve ao estado das prisões, o estado das prisões ao número de presos e a situação dos presos ao estado das prisões.

Assim inspirada no Marquês de Maricá, na sociedade brasileira tudo que acontece, ao se explicar, se autojustifica. Ou, quando a justificativa se sofistica, desemboca na falta de verbas, argumento que se torna tanto mais obsceno quanto é conhecido o descalabro no uso do dinheiro público.

Mais grave e para além dessa cultura política, mas como parte dela, o não dito que separa humanos e não-humanos. Como se tudo que se pensa, se escreve, se assina em tratados internacionais e se coloca em lei tivesse a sua zona de sombra, lá onde habitam os derrelitos, os mendigos, os criminosos que, vivendo fora da lei, é como se não merecessem seu abrigo. São seres visíveis e incômodos, réprobos que, por isso mesmo, se tornam invisíveis à sensibilidade coletiva que emite contra eles uma surda e implacável sentença.

Uma presa está sob a custódia do Estado. Quem, no Pará, se importou que essa jovem fosse jogada na cela dos homens? O julgamento já estava feito no espírito das autoridades e era mais severo do que uma mera pena de prisão. Se assim não fosse, teriam percebido o inaceitável da situação. Há um fundo de tolerância como se o que se passa nas prisões fosse merecido.

O Brasil tem duas caras. Aqui convivem o luxo dos tribunais, a pompa dos concorridos seminários sobre direitos humanos em que o país posa como civilizado, com antros infectos como aquele em que a jovem foi deixada, como se pertencesse a um outro mundo. Esse mundo é o que lá de baixo nos encara.

Há anos a situação carcerária é bem conhecida, o que torna o caso mais indefensável. Que ninguém mais nos governos se exponha ao ridículo de gastar palavras enquanto não forem capazes de construir nos presídios, quanto mais não seja, uma ala separada para presas.

Dessas duas caras participa também a maneira como a sociedade trata as mulheres. Até hoje, no Rio de Janeiro, é preciso separar os vagões nos trens para impedir o abuso sexual contra as usuárias de um serviço público. É o único caso de apartheid apoiado pelas próprias vítimas, elas que, descrentes da capacidade do Estado de garantir-lhes integridade física nos transportes em comum, aceitaram essa aberração que é um vagão separado. Habituaram-se a isso, todos nos habituamos a isso, como se fosse normal. O estupro paira como uma possibilidade que o Estado, não conseguindo se impor, garantir segurança, exigir respeito, previne separando vagões.

Essa onipresença da agressão sexual nega a humanidade das mulheres, revela a barbárie nas entranhas de uma suposta democracia, desqualifica o país, o mesmo que assinou a Plataforma da Conferência Mundial sobre as Mulheres em Beijing.

O que aconteceu no Pará pôs a nu essas duas caras e, como sempre nesses casos, o que se descobre é monstruoso.

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é presidente do Centro de Liderança da Mulher. E-mail: rosiska.darcy@uol.com.br

N. da R.: João Ubaldo Ribeiro volta a escrever neste espaço no próximo mês.