Título: Em matéria eleitoral o que vale é a idéia de limpeza ética
Autor: Brígido, Carolina; Gripp, Alan
Fonte: O Globo, 27/01/2008, O País, p. 10

O senhor considera a Justiça Eleitoral capacitada para coibir crimes cometidos pelos candidatos em campanha?

CARLOS AYRES BRITTO: Sim. Mas o gênero humano é pródigo no arranjo de fórmulas espúrias. A criatividade no campo da ilicitude é infinita. A cada momento nos deparamos e nos surpreendemos com formas inéditas de burlar nossa fiscalização.

O que o juiz pode fazer para melhorar a Justiça Eleitoral?

AYRES BRITTO: Interpretar a legislação cada vez mais à luz da Constituição. Uma das questões mais debatidas ano passado foi a fidelidade partidária. A Constituição, que quer e exige fidelidade, faz do partido protagonista do processo eleitoral. Não há candidatura autônoma. O partido investe no candidato, o seleciona em convenção, abona o nome dele e cede espaços de propaganda para ele. De repente o eleito dá as costas ao partido com o mandato embaixo do braço. Acabamos com essa farra.

Haverá punição antes de 2010?

AYRES BRITTO: Sem dúvida que sim. O propósito é esse: antes de 2010 estará tudo resolvido. Mas a decisão é sobre o mandato atual. O político estará livre para concorrer nas próximas eleições.

Como eliminar o caixa dois?

AYRES BRITTO: Uma das formas é instituir o financiamento público de campanhas. Seria fundamental. Mas é possível fazer isso no plano jurisdicional. O TSE tem que entender que caixa dois significa abuso de poder econômico e causa perda de mandato. O tribunal está começando a ver dessa forma.

Apesar de a lei permitir, o senhor concorda que pessoas com problemas na Justiça possam se candidatar?

AYRES BRITTO: Não. A norma jurídica nem sempre se manifesta por explicitude. Também se manifesta por implicitude. Em 2006, o TRE do Rio negou registro a Eurico Miranda como candidato a deputado federal, dizendo que ele respondia a um número tão grande de processos que evidenciava vida pregressa incompatível com a pureza que se exige do candidato. Concordo. Fiz um voto longo. Acabei vencido, mas dois ministros me acompanharam. A decisão foi por 4 a 3 no TSE. Ele andou dizendo que eu devia ser flamenguista. Logo eu, que sou vascaíno antes dele!

Isso não fere o princípio de que uma pessoa só é considerada culpada quando julgada em última instância?

AYRES BRITTO: Há um direito constitucionalmente assegurado, que é a presunção de não culpabilidade enquanto não haja sentença penal condenatória definitiva. Mas é em matéria penal. Em matéria eleitoral, vale é a idéia de limpeza ética. Quem não tem o passado limpo, quem não tem vida pregressa pautada na ética, não tem qualificação para representar o povo.

A pessoa teria que ter condenação pelo menos em primeira instância, como Eurico?

AYRES BRITTO: Tem que ter. Mas isso tem que ser analisado caso a caso.

São muitos os candidatos com problemas na Justiça...

AYRES BRITTO: Chamo isso, com todo o respeito, de interpretação leniente da Justiça, interpretação frouxa. Não está conforme o rigor da Constituição. A Justiça Eleitoral, quando recebe pedido de registro de candidatura, tem o dever de pedir informações sobre a vida pregressa da pessoa. Só pode ser político quem tem vocação para servir a coletividade, ou seja, espírito público.

Não seria necessária uma lei para impedir isso?

AYRES BRITTO: O ideal seria uma nova lei. Mas a falta de lei não significa falta de direito.

Não é temerário o Judiciário agir sem lei específica?

AYRES BRITTO: O legislador é incapaz de prever todas as possibilidades de tramóias. O direito padece dessa fragilidade estrutural. Não tem resposta normativa escrita detalhada para a infinitude das vias de obtenção de um mandato escusamente. Aí o Judiciário entra. Chega um ponto em que tem que partir para interpretações implícitas. Quando você usa os dois lados do cérebro equilibradamente, o da razão e o da emoção, faz um casamento por amor e tem um rebento chamado consciência. Acusam o Judiciário de substituir o legislador. Não é isso. Podemos, com sensibilidade, adquirir novo par de olhos.

É possível que governos criem programas sociais em ano eleitoral?

AYRES BRITTO: Em tese, seria proibido, mas teria que analisar caso a caso. É possível que, a pretexto de implantar uma política social, se esteja desequilibrando a disputa eleitoral. O caso vai dizer.

A lei eleitoral permite que políticos cassados há quatro anos sejam candidatos neste ano. Concorda com isso?

AYRES BRITTO: É uma falha de interpretação. Temos que evoluir na interpretação. O maior teórico do direito, Hans Kelsen, dizia que o direito legislado é uma moldura aberta: cabe mais de uma interpretação, salvo raras exceções.

Pela lei, a punição é de três anos, a contar da eleição em que o ilícito foi cometido.

AYRES BRITTO: Nunca recebi um processo desses. A primeira vez que receber acho que vou chegar a uma conclusão diferente. Os físicos quânticos observam que a matéria é feita de partículas e ondas que se interagem. O observador atento passa a desencadear reações no objeto investigado. Uma norma jurídica é o meu objeto. Vou conversar com ele, ler com cuidado e entrar num clima de empatia. De repente ele passa a se me dar por um ângulo insuspeitado. Ao nível da interpretação, o Judiciário pode contribuir para o aperfeiçoamento do sistema jurídico. Eu entro num clima dialogal com o texto.

Todos os juízes deveriam proceder dessa forma?

AYRES BRITTO: Muitas vezes, o defeito não é da legislação. E é cômodo para o juiz dizer: "Vou lavar minhas mãos". Dizem: "Não posso fazer nada". Pode sim! Releia a lei. Não tenha pressa!

O PT que o senhor ajudou a fundar é diferente do de hoje?

AYRES BRITTO: Sou muito de virar a página. Como toda pessoa que faz meditação oriental, um exercício de presentificação, você aprende a viver no presente. Virei essa página do meu vínculo com o PT.

Mas renega esse passado?

AYRES BRITTO: De jeito nenhum. Foi muito importante para a minha formação, a minha visão de Brasil, o meu compromisso social.

O passado não o influencia?

AYRES BRITTO: Em nada.

"Em matéria eleitoral o que vale é a idéia de limpeza ética"

Próximo presidente do TSE afirma que candidato que não tem passado limpo não pode representar o povo

Carlos Ayres Britto, 65 anos, recebeu O GLOBO em seu apartamento, em Brasília, com uma edição da Constituição debaixo do braço. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) estudava a lei eleitoral para não fazer feio em sua primeira entrevista como virtual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cargo que, pela tradição sucessória da Corte, assumirá em maio. O exemplar da Carta Magna chama a atenção por ter cada espaço em branco recheado por anotações de próprio punho. É assim que ele estuda cada vez que precisa decidir alguma questão importante. Tem mais de 150 exemplares da Constituição, todas rabiscadas. "É uma coisa louca, né?", pergunta, brincando com a própria mania.

No início de cada resposta, Ayres Britto assume ser uma pessoa "difícil de se entrevistar". Antes de entrar no tema perguntado, é capaz de juntar num preâmbulo conceitos de física quântica, filosofia, poesia, meditação e, é claro, direito. Mas não foge a nenhuma polêmica. Uma delas, promete repercussão: Ayres Britto defende que candidatos com ficha criminal tenham o registro negado, mesmo que não tenham sido condenados em última instância. "Mas cada caso é um caso", pondera. Cita como exemplo Eurico Miranda, presidente do seu clube de coração, o Vasco.

Assistir a jogos de futebol, aliás, é um dos hobbies desse sergipano que parece fazer multiplicar as horas do dia. Além das 12 a 14 horas de trabalho, dedica 20 a 40 minutos por dia a sessões de meditação, e outros tantos ao violão. Ao arranhar algumas notas, lembra que compôs músicas para festivais de MPB em seu estado. Já publicou sete livros de poesia. "Só há uma coisa de que gosto mais que direito: arte".

Meditação, violão e células-tronco

Ministro escreve poesia e, na hora de votar, cita de Camões a Raul Seixas

BRASÍLIA. Às quatro horas da manhã ele desperta sozinho. Vê a mulher, Rita, companheira há 26 anos, ainda adormecida. Ela nem estranha mais os hábitos do marido. Carlos Ayres Britto começa a meditar. A sessão dura 20 minutos. Para ele, equivale a três horas de sono. Em seguida, desperta de vez: faz caminhada, toca violão, informa-se sobre futebol, escreve poesia e, de quebra, elabora votos sobre os mais complexos assuntos da vida nacional. No fim das contas, o dia do ministro parece ter muito mais que 24 horas.

No momento, ele prepara o voto sobre o futuro das células-tronco no país, assunto que será julgado este semestre pelo Supremo Tribunal Federal, onde Ayres Britto chegou há pouco mais de quatro anos.

Mais do que uma pessoa de fala pausada e semblante tranqüilo, o ministro é "avoado", como definem pessoas próximas a ele. Certa vez, ainda em sua cidade natal - Propriá, interior de Sergipe -, roubaram o talão de cheque de uma de suas 11 irmãs. O suposto estelionatário causou grande prejuízo. Ayres Britto ajudou a irmã a sustar os cheques e acompanhou o pesadelo de perto. Os comerciantes da cidade já estavam em alerta, até que um caixa de supermercado flagrou o larápio e ligou imediatamente para a dona do cheque. Quando ela chegou, deu de cara com o irmão. "Ih, seu cheque estava comigo e eu nem tinha percebido..."

- O tio Carlinho sempre foi desligado - conclui um dos sobrinhos, Cezar Britto, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

No STF, é de Ayres Britto a tarefa extra-oficial de pacificar os ânimos durante discussões calorosas. Algumas vezes, ele mesmo é a origem da controvérsia. Quando o ex-ministro do STF Nelson Jobim presidia a Corte, costumava ficar irritado com suas intervenções poéticas. Adepto do trocadilho e da rima, cita Camões, Chico Buarque e até Raul Seixas.

- Quando cheguei ao Supremo, o Nelson foi muito contundente comigo. Ele não aceitava meu jeito de falar por metáforas. Depois virou um amigo querido e entendeu que não sei falar de outro jeito.

Para o ministro Marco Aurélio Mello, o colega é o diplomata do Supremo:

- Ele tem uma leveza, praticamente levita. Nunca o vi sair do sério. É fator de equilíbrio, costuma afastar atritos.

Ayres Britto comenta tudo. Mas é lacônico sobre o PT, que ajudou a fundar e pelo qual foi candidato a deputado federal em 1990.

- É página virada.(Alan Gripp e Carolina Brígido)