Título: O Timor Leste precisa de mais brasileiros
Autor: Cohen, Sandra
Fonte: O Globo, 29/01/2008, O Mundo, p. 32

Presidente diz que problema não é falta de verbas, mas de recursos humanos e de capacidade para executar o orçamento.

Combativo porta-voz da resistência timorense, José Ramos-Horta ganhou o Nobel da Paz em 1996 e chamou a atenção do mundo para o minúsculo território brutalmente invadido em 1975 pela Indonésia. A independência foi alcançada em 2002 e desde então ele já ocupou os cargos de chanceler, ministro da Defesa e primeiro-ministro da mais jovem democracia da Ásia. No ano passado, achou que já era o momento de se retirar da vida pública, mas acabou eleito presidente, após os violentos distúrbios que sacudiram o país. Aos 58 anos, ele alimenta o sonho de escrever um livro para crianças com Paulo Coelho. Ramos-Horta, que visita o Brasil, quer obter do governo mão-de-obra qualificada para seu país.

Sandra Cohen

Ao ser eleito o senhor disse que carregaria uma cruz em nome da estabilidade do país. Qual é o peso dessa cruz?

JOSÉ RAMOS-HORTA: Eu era um candidato extremamente relutante. O meu plano não era continuar na vida pública, era em maio de 2007 finalmente fechar esse capítulo porque creio que já contribuí muito para o país. Eu dizia ao eleitorado: se votarem em mim, me darão uma cruz pesada, que eu vou transportar durante cinco anos. Se não votarem em mim, me darão a liberdade. Ganhei uma cruz de pau muito pesada, com a tarefa de fazer a reconciliação nacional, sarar as feridas dentro das Forças Armadas, dentro da polícia, dentro da sociedade em geral. Tenho feito o trabalho com algum sucesso. A situação está mais pacífica, a economia está se recuperando. O exemplo foi o Natal passado, o mais celebrado de todos. É um sinal de confiança.

A escalada da violência paralisou o país em 2006 e provocou o êxodo de 150 mil pessoas. Quantas já conseguiram voltar para suas casas?

RAMOS-HORTA: De um total de 150 mil deslocados, pelo menos metade já regressou às suas terras. Ainda há cerca de 70 mil em campos de refugiados. Muitos dos deslocados estão ali por uma questão de oportunismo porque recebem ajuda de alimentos. Há outros que estão genuinamente traumatizados e têm medo de regressar a seus bairros por causa de rivalidades. Há um terceiro grupo que realmente perdeu casas. O governo já tem no orçamento pelo menos US$20 milhões este ano para compensá-los. Mas o processo não é tão simples. É necessário continuar o processo do diálogo nas comunidades para que as pessoas se aceitem mutuamente.

O senhor acredita então que as feridas abertas por 24 anos de ocupação não foram cicatrizadas com o pacto de coesão social feito na independência?

RAMOS-HORTA: Ainda não. Nós temos uma sociedade ainda profundamente traumatizada por mais de duas décadas de ocupação e violência, em que a morte bateu à porta de cada família timorense. Foram anos de sofrimento, humilhação e marginalização. Isso explica em grande parte a violência que tivemos em 2006 e o índice muito elevado de violência doméstica.

O senhor pediu à população que perdoasse o ex-presidente Suharto, falecido anteontem e um dos principais responsáveis pela brutal invasão de Timor Leste, que resultou na morte de 200 mil pessoas. O senhor, que perdeu metade de sua família, acha que isso é possível?

RAMOS-HORTA: O povo timorense é muito generoso, com coração de ouro. Face a um senhor muito velho à beira da morte, as pessoas devem perdoá-lo para que Deus o receba.

A morte sem julgamento foi justa?

RAMOS-HORTA: Não vamos julgar o morto. O maior ato de justiça é que a maior injustiça foi corrigida ao ganharmos a nossa independência. Essa injustiça foi perpetrada pela Indonésia e também pela comunidade internacional, sobretudo por Estados Unidos, Reino Unido e Japão, que sempre apoiaram a ditadura de Suharto. Ele foi o filho predileto das democracias ocidentais porque era um aliado seguro na luta contra o comunismo, um país estrategicamente importante, produtor de petróleo. Esses grandes países que hoje falam em democracia não hesitaram em sacrificar milhares de timorenses no altar da Guerra Fria e de seus interesses.

Como é a sua relação com a Fretilin, partido ao qual pertenceu e agora é de oposição?

RAMOS-HORTA: Tenho excelentes relações com todos e ex-elementos do governo anterior que trabalham comigo. Queremos chegar a um acordo subscrito por todos os partidos sobre os militares e a reforma de segurança. A Fretilin também quer eleições antecipadas porque diz que o governo é inconstitucional. Eu não tenho problemas com isso, se todos os partidos aceitarem. Mas nunca seria antes de meados 2009. Vamos dar um ano em meio ao governo para provar o que vale.

É difícil alternar com Xanana Gusmão os cargos de presidente e primeiro-ministro?

RAMOS-HORTA: Pelo visto, essa nossa experiência está influenciando a Rússia (risos). O presidente Putin deve virar primeiro-ministro e o atual vice-premier pode ser o presidente. Eu respeito muito o Xanana Gusmão, tenho amizade com ele porque é um verdadeiro herói nacional. Vivemos mais duas décadas na diáspora. Malgrado a nossa contribuição, nunca é tão importante se comparada com aqueles que permaneceram 24 anos nas montanhas.

Como o senhor, ele também queria se aposentar?

RAMOS-HORTA: Queria, mas quando se deu a crise em 2006, achou que devia continuar a ajudar a estabilizar o país e encontrar um novo rumo para o futuro. Ele queria abandonar a política, estava cansado, queria se dedicar à sua nova família.

Como o senhor concilia a vida pública e a militância com a vida privada?

RAMOS-HORTA: Eu me sinto mais feliz em Timor Leste quando viajo pelo interior. Gosto de conversar com os pobres nas aldeias. Eles me pedem tão pouco que isso me constrange. Não sou casado. Tenho um filho adulto que mora em Cingapura. Vida privada para mim é conviver com o ser humano.

Cerca de 41% da população sobrevivem com meio dólar por dia e metade da população é analfabeta. Por que o governo anterior só conseguiu usar 20% do fundo referente à exploração das reservas de petróleo e gás natural no Mar do Timor?

RAMOS-HORTA: O governo anterior era acusado de má execução orçamentária e é verdade. Isso tem a ver com a falta de recursos humanos e a falta de experiência de ministros do governo anterior. O atual governo parece que está realizando mais em termos de execução orçamentária O problema não é falta de dinheiro, mas sim falta de recursos humanos e capacidade de liderança dos membros do governo para executar o orçamento que têm.

Que tipo de ajuda o senhor pedirá ao governo Lula?

RAMOS-HORTA: O Brasil já coopera, com 250 pessoas, nas áreas de ensino de português, de justiça. Vamos assinar um novo programa de cooperação com o Brasil e a Indonésia para apoio de reflorestamento no Timor Leste. Queremos, se possível, aumentar o número de juristas. O Brasil também poderia enviar mais técnicos de finanças, agricultura e de saúde, que poderiam ser extremamente úteis porque temos grande déficit de mão-de-obra. O brasileiro se adapta mais facilmente em Timor Leste.

A língua portuguesa está sendo difundida?

RAMOS-HORTA: Creio que 20% da população entendem português. O ensino é obrigatório e a língua, oficial. Há cinco, dez anos as crianças só falavam tétum. Hoje não. Mas a batalha pela língua só será vencida em 20 anos. É um esforço prolongado. Portugal e Brasil têm papel determinante nisso. Caso contrário, o português será ultrapassado pelo inglês.

O que é mais difícil, ser governo ou ser oposição?

RAMOS-HORTA: A luta pela independência era mais dura porque resultou em milhares de mortos vítimas de torturas. A governança é complexa, mas é um desafio intelectual e interessante. Na verdade o que eu gostaria era ser um escritor como o Paulo Coelho. Estou pedindo a ele para colaborar comigo numa série de contos para crianças baseados numa lenda de Timor Leste, que serão narrados por mim no rádio e na TV.

Qual foi o momento mais difícil em toda a sua militância?

RAMOS HORTA: No governo, foi o pesadelo de 2006. A invasão de 1975 foi muito marcante. Cheguei em Nova York em pleno inverno. Falava mal o inglês. Minha família ficara para trás, podia morrer, todos dependiam de mim e do que eu podia fazer para impedir o genocídio de Timor Leste. Tinha 25 anos, fui fazer lobby e consegui uma resolução unânime do Conselho de Segurança em 22 de dezembro condenando a invasão. Mas a Indonésia continuou lá por mais de 24 anos. Os EUA votaram conosco, mas logo depois venderam mais armas ao país. Foi a minha primeira lição da hipocrisia internacional.