Título: O fantasma da polarização social
Autor: Engel, Wanda
Fonte: O Globo, 31/01/2008, Opinião, p. 7

O contexto atual de países vizinhos, como Venezuela, Bolívia, revela uma profunda divisão dessas sociedade em dois blocos oponentes, o que caracteriza um fenômeno conhecido como de polarização social. Apesar de não estarmos ainda nesse estágio, vivemos no Brasil um momento em que vem sendo crescentemente reforçada a dicotomia entre povo e elites, ricos e pobres, excluídos e incluídos. O aprofundamento dessas oposições pode levar-nos ao agravamento de uma situação já claramente existente de fragmentação social, que no limite nos transformaria, também, em uma sociedade polarizada.

A idéia de fragmentação, reverso da chamada coesão social, surge no bojo do processo de constituição da União Européia. Em março de 2004 o Conselho Europeu lança uma "Estratégia Revisada para a Coesão Social". Esse documento define coesão social como sendo a capacidade que possui uma sociedade de assegurar o bem-estar de todos os seus membros, minimizando as desigualdades e evitando a polarização. Em estudo posterior, o BID define coesão social como um conjunto de fatores que contribuem para o estabelecimento de equilíbrios básicos entre indivíduos e grupos de uma dada sociedade, manifestando-se através de seu grau de integração econômica, social, política e cultural. Para essa definição, o termo integração se refere ao grau de organização que tem essa sociedade para cumprir sua função mais importante: a de produzir o bem-estar de seus cidadãos.

Analisando essas duas definições, é possível verificar que o primeiro fator determinante da coesão seria a igualdade de oportunidades para todos, e o segundo, o grau (e o tipo) de interação existente entre sujeitos e grupos sociais. A interação baseada em laços de confiança, colaboração e solidariedade constituiria o chamado capital social.

Na tentativa de estabelecer uma correlação entre coesão social e desenvolvimento econômico, o BID criou um Índice de Coesão Social (ICS) e o aplicou aos países da América Latina. Os resultados mostraram altos graus de correlação entre esse índice e as taxas de crescimento econômico, o grau de competitividade, a capacidade de inovação tecnológica e o grau de governabilidade democrática desses países.

Em outras palavras, a desigualdade, as relações de desconfiança e discriminação entre grupos sociais, a violência e o baixo nível de responsabilidade social, que caracterizam uma situação de fragmentação social, interferem diretamente na capacidade de uma sociedade promover seu próprio desenvolvimento econômico, social e político.

Poderíamos citar vários exemplos que corroboram essa tese. A desigualdade de acesso a uma educação de qualidade está definindo no Brasil uma situação que já vem sendo caracterizada como uma "crise de audiência do ensino médio". Do total da população de 10 milhões de jovens entre 15 e 17 anos, somente 4 milhões se encontram matriculados nesse nível. Como conseqüência histórica dessa situação, o percentual da população economicamente ativa com escolaridade média no Brasil é de apenas 14,4%, enquanto no México esse índice chega a 37%; no Chile, a 35,7%; e na Argentina, a 31,1%. Numa sociedade globalizada, tais níveis de escolaridade afetam profundamente nosso grau de competitividade e nossa possibilidade de desenvolvimento sustentável.

No campo do capital social, estudos do Banco Mundial revelam que os comportamentos negativos dos jovens podem representar uma redução anual do crescimento que nos fará deixar de ganhar, nos próximos 40 anos, algo em torno de R$300 bilhões (16% do PIB). Além de deixarmos de ganhar, gastamos muito por conta da violência. Estudo do BID estima que o preço anual da violência no Brasil representa 10,5% de nosso PIB.

O mais grave é que o aprofundamento do processo de fragmentação pode levar-nos a uma situação de polarização, em que os grupos tendem a se concentrar nos dois extremos do continuum social, acirrando os conflitos e levando à perda de nossa capacidade de funcionar como um todo orgânico.

Acirrar os conflitos, polarizando a sociedade, não interessa nem às elites nem ao povo, nem a ricos nem a pobres, nem a incluídos nem a excluídos. Uma sociedade, para ter futuro, necessita de um mínimo de coesão social, como condição básica para que ela seja capaz de produzir o bem-estar coletivo. Vale lembrar que coesão se constrói com igualdade de oportunidades, mas também com o aumento da confiança, do respeito e da solidariedade entre os diferentes grupos sociais.

WANDA ENGEL é superintendente do Instituto Unibanco.