Título: A crise e seus impactos
Autor: Mercadante, Aloizio
Fonte: O Globo, 03/02/2008, Opinião, p. 7

A julgar pelos indicadores mais recentes, a economia norte-americana, corroída pela crise de crédito originada no ajuste da bolha imobiliária, parece caminhar, inevitavelmente, para a recessão. O que não se pode ainda avaliar é a intensidade e a duração que pode ter esse processo, das quais dependerá a magnitude do seu impacto sobre a economia mundial. Os Estados Unidos são o maior mercado consumidor do planeta, respondendo por 16% (equivalentes a algo em torno de US$2 trilhões) das importações mundiais. A retração da sua economia, além dos desdobramentos na esfera financeira, tende a provocar efeitos em cadeia sobre os fluxos de comércio internacional, com reflexos depressivos sobre os preços.

A gestação da atual crise revela aspectos pouco discutidos do sistema financeiro que põem em questão a tese da sua auto-regulação e os novos mecanismos derivados de sua crescente sofisticação. Esses mecanismos tendem a ofuscar a gravidade dos riscos envolvidos e encobrir procedimentos no mínimo discutíveis de socialização desses riscos.

A bolha imobiliária norte-americana se originou na extraordinária valorização real dos imóveis residenciais (85% entre 2001 e 2006), sustentada pela expansão do crédito imobiliário, que, a partir de 2004, foi alimentada principalmente por operações de crédito de longo prazo com pessoas físicas com alto risco de crédito, as chamadas hipotecas de segunda linha (subprime). O mercado de hipotecas movimentou cerca de US$9 trilhões no triênio 2004/2006 e as hipotecas de segunda linha, que até 2003 representavam cerca de 8% do total, saltaram para 20%.

A valorização dos imóveis permitia a renovação periódica dessas hipotecas pelos devedores inadimplentes. Os bancos financiavam essas operações colocando títulos no mercado de capitais, via fundos de investimento lastreados em uma combinação de hipotecas com diferentes níveis de risco. Com isso diluíam o risco dos títulos mais podres e viabilizavam a emissão, sobre o conjunto, de derivativos de crédito, ou seja, novos títulos lastreados nos anteriores. Cerca de 80% das subprimes foram securitizados por esse procedimento. Para administrar as hipotecas de máximo risco foram criadas empresas, as SIV (Empresas de Investimentos Estruturados), que colocavam no mercado títulos de curto prazo de alta rentabilidade, bancados por circunstanciais injeções de liquidez dos próprios bancos .

A reversão da trajetória de expansão do mercado de imóveis, a partir de 2005, e seus reflexos sobre os preços das residências, inviabilizaram a continuidade desse processo de reprodução de hipotecas e títulos podres e gerou uma onda de inadimplência. Isso levou os detentores das quotas e dos títulos dos correspondentes fundos de investimento a tentarem se desfazer dos mesmos, com as conseqüências já conhecidas sobre o mercado de crédito e a situação dos bancos envolvidos.

Note-se que, em outubro de 2006, já era evidente a retração do setor imobiliário e que no início de 2007 já havia claros sinais de crise no setor bancário (com as perdas anunciadas pelo HSBC e pela Fremont General Corporation, em fevereiro). Mas somente em julho as agências de classificação de risco alterariam sua avaliação e o Fed começaria a intervir para tentar conter a propagação da crise. O que, aliás, confirmaria a tese de Galbraith de que "Desde 1913, quando começou a existir de fato, o Fed tem tido, contra a inflação e sobretudo contra a recessão, um histórico de profunda e permanente irrelevância".

Essa insuficiência das atuais modalidades de coordenação, acompanhamento e controle das operações financeiras mostra que é imprescindível criar mecanismos efetivos de controle público sobre as instituições e o funcionamento do sistema financeiro. É bom ter presente que as crises geram efeitos assimétricos que se acentuam quando se propagam à esfera real da economia. E recessão significa, em última instância, aumento do desemprego e compressão da renda e do consumo da população.

A economia brasileira será atingida, mas tem hoje uma maior capacidade de absorver os impactos negativos imediatos da crise financeira e de limitar os efeitos internos de uma eventual recessão da economia norte-americana. As necessidades de financiamento externo da economia são pouco significativas, nossos mercados de exportação são diversificados, a redução do endividamento externo e aumento das reservas asseguram elevado grau de solvência e o crescimento econômico está hoje assentado em vetores internos de dinamismo.

De outro lado, o processo de desvalorização do dólar deve se aprofundar e com ele "o maior calote da história", como advertiu a revista "The Economist". O Citybank, que coordenava os bancos credores na crise da dívida externa, já amargou um prejuízo de US$20 bilhões e demitiu 14.000 funcionários. E o FMI permanece em um incômodo e profundo silêncio. Será que o mundo será o mesmo depois desta crise? Pelo menos parte do discurso conservador obrigatoriamente terá que mudar.

ALOIZIO MERCADANTE é senador (PT-SP).