Título: A farsa da portabilidade
Autor: Pinotti, José Aristodemo
Fonte: Correio Braziliense, 25/04/2009, Opinião, p. 31

Deputado federal (DEM-SP), secretário especial da Mulher do município de São Paulo, professor emérito da USP e da Unicamp, membro da Academia Nacional de Medicina

Farsa é o que acontece sempre depois da Medida Provisória nº 148, de 2004, que deu plenos poderes a ANS para solucionar as questões dos planos de saúde. Fazemos a pressão possível no Congresso para corrigir distorções graves e, quando a corda estica, a ANS combina com as operadoras um aparente recuo ¿em favor dos usuários¿ que, na realidade, acaba favorecendo os planos e define as regras sem qualquer controle. Foi o que ocorreu com essa farsa da portabilidade. Ela será possível para menos de 15% dos usuários, com restrições tão absurdas que eles terão dificuldades de usá-la. O pretendente à mudança precisa ficar no plano dois a três anos antes de poder mudar e só pode fazê-lo na época do aniversário do plano.

Por quê? E o que é pior: são obrigados ¿ e, tampouco a nossa imprensa investigativa quis saber a razão ¿ a mudar para planos idênticos ou mais baratos quando, na realidade, quem precisa mudar, porque está descontente, quer fazê-lo para melhorar, não para piorar. Mas, novamente, por que essa exigência da ANS? Simplesmente para dar mais lucros às operadoras, pois esses cidadãos que pagavam por uma possibilidade maior de facilidades ¿ possivelmente não usufruídas, porém pagas nos últimos anos ¿ vão ser obrigados a deixar de usá-las definitivamente quando mudarem para um plano mais barato. Ganharam as operadoras que receberam, não cumpriram e encerraram o contrato faturando o lucro.

Outra vantagem grande e colateral da portabilidade para as operadoras é que ela está colocada como isca, pressionando os milhões de usuários dos planos antigos a fazerem a malfadada migração e pagarem muito mais por suas mensalidades, como a ANS deseja e faz propaganda enganosa a respeito. Ou ainda, o que é o supremo desejo da dupla inseparável ANS/operadoras, fazendo a migração tornar o idoso (que predomina lá nos planos pré-99) inadimplente, pois ele terá que pagar muito mais e abandonar o plano.

Aliás, os pilares de proteção das operadoras (ANS/Abramge e seu lobby disciplinado de parlamentares) aprovaram na Comissão de Seguridade e Família um projeto de lei (PL 4.076, de 2001) de um deputado da base do governo sem discussão, deixando totalmente por conta da ANS o aumento por faixa etária por ela regulamentado em 500%. As últimas etapas, próximas dos 60 anos, sofrem elevações três a quatro vezes maiores que as primeiras, criando situação insustentável para o idoso. A justificativa dos deputados, do autor e do relator é de que essa é uma questão que não deve constar em lei, mas ser deixada por conta do mercado. É esse o papel do Congresso? Apoiar megaoperação que expulsa os idosos e os jogam doentes no mercado? Para onde irão?

Ou seja, tudo a favor dos planos, cínica e eficientemente transformados e vendidos em boa parte para a imprensa, e propagados por ela como ¿a favor do usuário¿. E isso ocorre pelo poder das operadoras, que faturam anualmente mais de R$ 50 bilhões.

Kant dizia que ¿nunca seremos capazes de saber com toda certeza como as coisas são em si, mas podemos saber como elas se passam para nós¿. É só pensar e se vê como fica fácil imaginar como as operadoras pressionam com facilidade um único diretor da ANS, sem qualquer controle externo e todo poder para legislar dado pelo governo (MP nº148 de 2004). Para tanto serve a atuação decisiva de uma bancada submissa de deputados ávidos por favores, e boa parte da própria imprensa, até para que as operadoras não façam ressarcimento de enorme quantidade de dinheiro que devem ao SUS ¿ e não pagam com o aval, anuência e complacência da ANS. Até quando irá essa roubalheira que, do outro lado, aumenta a morbidade, a mortalidade e o sofrimento dos usuários do SUS privados dos recursos? Será que o governo não enxerga? Com que cara o ministro da Saúde, a meu ver homem íntegro, discípulo do meu discípulo e amigo Sergio Arouca, tira fotografia ao lado do presidente da ANS ouvindo suas afirmações obliquas e enganosas?