Título: Brechas na lei, fiscalização falha
Autor: Jungblut, Cristiane
Fonte: O Globo, 09/02/2008, O País, p. 3

GASTOS SEM CONTROLE

Criados para agilizar compras pequenas e de urgência, cartões acabam registrando abusos.

As denúncias de gastos irregulares com cartões corporativos do governo federal, que já levaram à demissão da ministra Matilde Ribeiro da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Presidência, mostraram que há falhas na fiscalização de um sistema de pagamento que, só em 2007, consumiu R$78 milhões. Apesar de os dados sobre os gastos estarem disponíveis no Portal da Transparência, elaborado pela Controladoria Geral da União (CGU), os órgãos fiscalizadores não conseguiram detectar falhas como compra de tapioca, reparo em mesas de sinuca e aluguel regular de carros.

A legislação que trata dos cartões está dispersa em diferentes decretos e portarias, e deixa margem para gastos esdrúxulos. O próprio ministro da CGU, Jorge Hage, tem dito que os ministros e demais servidores que utilizam o cartão precisam ter "bom senso" no uso do sistema. Hoje, os cartões podem ser usados para compra de materiais e contratação de serviços, o que na prática inclui desde a compra de material de escritório até pagamento de despesas de ministros em viagens pelo país.

A oposição diz que as irregularidades mostram problemas na fiscalização. Um dos problemas é que parte dos gastos é sigilosa, por segurança. No caso dos cartões, 21% dos gastos.

A confusão é tanta que há vários decretos tratando do uso do cartão (de 2001, 2005 e o mais recente, de fevereiro de 2008), e ainda uma portaria de 2002, do Ministério da Fazenda. Os decretos de 2005 e 2008 tratam de regras sobre suprimento de fundos, que são as autorizações para despesas pagas com cartões corporativos e com contas correntes chamadas de contas tipo B. Já o decreto de 2001 criou efetivamente o cartão corporativo.

A legislação estabelece, de forma genérica, que as despesas de pequeno vulto devem ter um limite. E o valor não está claro. Para se chegar a ele, é preciso percorrer um labirinto legal. Ao final se chega ao limite de R$8 mil para compras de material, e de R$15 mil para pequenas obras. Mas o problema é caracterizar o que são despesas de pequeno vulto ou despesas do servidor em viagem, por exemplo.

CGU faz verificação por amostragem

A legislação prevê que o saque com cartão seja uma coisa excepcional e em caráter emergencial. Mas, na prática, o uso do cartão se tornou rotina no Executivo. Principalmente para saques. Tanto que, em 2007, 75% dos gastos com cartão foram a partir de saques em dinheiro. Em 2007, o governo gastou R$78 milhões com cartões. O governo editou nos últimos dias novo decreto limitando em 30% os saques, mas eles continuam liberados.

O próprio Hage exemplifica a confusão. O servidor não pode usar o cartão para alugar repetidas vezes um carro, como fez a ex-ministra Matilde Ribeiro. Ele explica que "para aluguel de carro eventual pode, mas todos os meses caracteriza caso de licitação".

Outro exemplo é o pagamento com cartão de R$8,30 de uma tapioca pelo ministro do Esporte, Orlando Silva, em Brasília. Se a compra tivesse ocorrido em viagem, o gasto com alimentação seria permitido. Porque ocorreu em Brasília, é proibido. Em tese, os ministros também não poderiam pagar despesas de comitivas de autoridades. Mas isso aconteceu na Marinha.

- Eu já não pude pagar (refeições a convidados). Paciência. Passamos por grosseiros - brincou Hage.

Hoje não há fiscalização detalhada. O servidor tem que fazer a prestação de contas ao ordenador de despesas. Notas e recibos ficam ali para eventual auditoria e para serem requisitados pela CGU ou pelo Tribunal de Contas da União (TCU). A CGU, segundo sua assessoria, faz fiscalização por amostragem, levando em conta os cartões mais usados, as maiores compras, e se os fornecedores são sempre os mesmos. A ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, já admitiu que é preciso corrigir procedimentos como saques.