Título: Questão de justiça
Autor: Vianna, João Ernesto Aragonês
Fonte: O Globo, 12/02/2008, Opinião, p. 7

Apublicação de recente parecer jurídico, aprovado pelo ministro da Previdência Social, Luiz Marinho, dispondo sobre o enquadramento do posseiro ocupante de margens de rodovias como segurado especial, causou incompreensível indignação em determinados setores da sociedade. Frise-se que em nenhum momento o parecer ministerial assegura aposentadoria ou outro benefício àquele que simplesmente ostenta a qualidade de posseiro, mas exige deste os mesmos requisitos dos demais da mesma categoria.

Assim, o parecer reconhece o direito à aposentadoria por idade ou por invalidez, auxílio-doença, auxílio-reclusão ou pensão, no valor de um salário mínimo, desde que o segurado comprove o exercício de atividade rural por determinado tempo que, no caso de aposentadoria por idade, é de 180 meses, para homem ou mulher que completar 60 ou 55 anos, respectivamente.

O cerne da controvérsia reside na interpretação do art. 195, parágrafo 8º, da Constituição, segundo o qual "o produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos termos da lei".

Seguindo recomendação da OIT, nossa Constituição Cidadã ainda assegura o princípio da universalidade, base dos modernos sistemas de seguridade social espalhados mundo afora, que garante proteção social a todos, indistintamente. Mais. Buscando assegurar igualdade de tratamento entre trabalhadores urbanos e rurais, a mesma Constituição expressamente garantiu, como princípio, uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais. Dessa forma, foi-se construindo um avançado sistema de proteção social que, não obstante os desafios a serem superados, assegura proteção social a 64,1% da população ocupada de 16 a 59 anos. É a maior proteção social de toda a América Latina!

A questão previdenciária não se confunde com a civil, comercial ou outras, já que o direito previdenciário tem regras próprias - a maioridade civil aos 18 anos, por exemplo, em nada altera a condição de dependente previdenciário até os 21, para os filhos. Por essa razão, a conclusão do referido parecer pautou-se pelos limites traçados pela norma constitucional, e essa, em nenhum momento, faz referência à propriedade da terra como condição do reconhecimento de segurado especial. E nem poderia fazer, pois se o fizesse estaria, na prática, negando proteção previdenciária, justamente o que a Constituição quis evitar.

Não procede o argumento de que o parecer "incentiva" as invasões, pois em nenhum momento legitima estas. Como já dito, se há ato ilícito, deve ser apurado nas esferas próprias, pois "ilicitude previdenciária" não há. Também não procede o argumento de que o benefício é assistencialista, pois o elemento de discriminação é o trabalho rural e não a condição social do titular, o que evidencia a natureza previdenciária. A norma constitucional busca prestigiar o trabalho rural, nada mais.

Tudo isso, enfim, é reflexo do modelo de Estado assumido pela Constituição de 1988. Excluir o trabalhador rural que não comprove a propriedade da terra da proteção previdenciária é o mesmo que fechar os olhos para a erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais e regionais; negligenciar a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; negar ao país o desenvolvimento nacional e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Portanto, atrelar a aposentadoria rural à titularidade da terra representa uma imprevidência do Estado e vai de encontro aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

JOÃO ERNESTO ARAGONÉS VIANNA é procurador-geral federal.