Título: Os beneficiários da devastação
Autor: Abreu, Katia
Fonte: O Globo, 12/02/2008, Opinião, p. 7

A consciência pela preservação do meio ambiente, dominante entre nós brasileiros, está sendo afrontada pela incompetência do governo na questão da Amazônia. Não há mistério a decifrar na explosiva devastação da floresta, mas uma tentativa artificial de confundir e impedir a identificação do principal responsável. É ridícula essa discussão, que escamoteia o crime ambiental - sim, porque não se trata de uma divergência sobre formas de utilização econômica da floresta, mas de infringência de leis em vigor. Além de acinte aos esforços pela preservação da vida no planeta num espaço que nos cabe vigiar.

Não faz sentido a polêmica em torno dos detalhes do exame de "corpo de delito", já que não está em jogo o fato concreto - a tipificação penal - do aumento do desmatamento, embora o governo, para livrar-se da responsabilidade, agarre-se desesperadamente ao factóide risível que é a divergência sobre a precisa avaliação métrica do desastre. Um detalhe, se não fosse incongruente tratar assim números tão espetaculares.

O povo brasileiro poderia ser poupado da manobra cínica, que expõe o estilo hipócrita do governo. A extensão da área devastada - seriam mais ou menos 7.000 quilômetros quadrados, entre agosto e dezembro de 2007 - dispensa a exatidão da medida, uma vez que, mesmo que se aceite por baixo os números, a ordem de grandeza é espantosa. O que se coloca é pura e simplesmente a constatação da responsabilidade de quem tinha a guarda e vigilância da área devastada. Só a partir daí, apurada a incompetência, irresponsabilidade ou corrupção do Ministério do Meio Ambiente, seus dirigentes e órgãos - inclusive para inocentá-los, pois o impossível acontece - pode-se continuar a apreciação do grave problema criado.

Dispensa-se a choraminga da ministra Marina, que a todo custo quer se passar por vítima, quando devia simplesmente confessar seu fracasso. Também não fazem sentido metáforas malucas sobre o assunto. Há coisa mais sem pé nem cabeça, e de maior mau gosto, que aquela história do sintoma frustrado de câncer aplicado à controvérsia cavilosa sobre o desmatamento?.

Desçamos, portanto, aos fatos. O primeiro e mais gritante é a lembrança de que por remota que seja a área devastada - muitas só identificadas através de satélites - não se removem secretamente as toras da floresta para os portos e áreas de comercialização no país sem que sejam notadas pelos postos de fiscalização policiais, fazendários ou do próprio Ibama. É evidente que boa parte ou a totalidade dessa madeira foi acompanhada de guias, legais ou fraudadas. Portanto, houve permissão para que a madeira trafegasse, já que é impossível que não tenha sido observada sua movimentação sem que se acendesse o sinal amarelo da suspeita.

No caso, a ministra Marina Silva não precisa clamar como vítima mas, no mínimo, confessar negligência, incompetência ou traição, no caso da infidelidade dos seus colaboradores infiéis e de determinadas ONGs que acoberta. Não lhe resta alternativa, senão simplesmente assumir sua autoridade (para isso é ministra e paga), apurar as concessões dos tais DOFs do Ibama (as guias que atestam a procedência legal da madeira) e, se for o caso, demitir-se por ter sido incapaz de cumprir seu dever. Ela não é coitadinha coisa nenhuma, pois exerce em nome do Estado brasileiro a responsabilidade de guarda e gerência do patrimônio florestal preservado, com a agravante de que 76% da Amazônia são constituídos por terras públicas, cujo desmatamento, além de crime ambiental, implica roubo.

Sem essa de responsabilizar o dinamismo do agronegócio nacional, assim como seus produtores rurais que, autorizados por leis anteriores, desmataram 50% de suas propriedades e aguardam reconhecimento de seus direitos. Também não devem ser condenados isoladamente os assentados dos demagógicos programas de reforma agrária, abandonados no meio da mata virgem e, teoricamente, restritos a desmatar apenas 20% das suas pequenas propriedades mas que avançam, a cada ano, nos 80% de florestas que deveriam preservar.

Enquanto a opinião pública nacional é distraída com a discussão sobre se foram desmatados 3, 2 ou 7 mil quilômetros da Amazônia não se fala do fantástico negócio da madeira derrubada, já que o que se queima são apenas tocos, madeira branca e vegetação miúda. Madeireiros ilegais não foram citados, apenas os pecuaristas, agricultores e os assentados.

Há uma conspiração evidente para esconder os principais protagonistas beneficiados com a devastação. É falsa a impressão de que a mata é simplesmente queimada. A fumaça, no fundo, apenas esconde os madeireiros contraventores, grandes especuladores internacionais que usufruem lucros fabulosos em um dos mais aquecidos mercados do mundo. Impunes, sem ao menos serem citados, contabilizam seus dólares e euros. Enquanto uma árvore deitada tiver mais valor que uma árvore em pé, dificilmente vamos ter resultados positivos na preservação da Amazônia.

Nesse quadro, os brasileiros são tentados a esquecer o essencial, que me permito lembrar: a preservação da Amazônia é uma questão de Estado, um objetivo nacional, do qual o governo não pode se omitir. Não lhe é concedido lavar as mãos ou tentar montar enredo de conto policial, pois não há suspense, dúvida ou mistério sobre o culpado. O culpado não é o mordomo. Não há o que desvendar. A acusação é óbvia, nada tem de anedótica ou presumida.

O governo, depositário infiel, não guardou o que lhe foi confiado, não recuperou o que deixou roubar e, depois de constatada a devastação, nem ao menos tomou medidas acauteladoras para evitar que prossiga. Limita-se a gritar, lamuriar-se, coagir e multar, sem apresentar política pública consistente. Em meio ao caos, cava sua candidatura, não ao Prêmio Nobel como alardeia, mas ao Guinness, o livro dos recordes bizarros e superlativos intrigantes, como campeão da denúncia de sua própria culpa.

KATIA ABREU é senadora (DEM-TO).