Título: O grave é ser legal
Autor: Buarque, Cristovam
Fonte: O Globo, 25/02/2008, Opinião, p. 7

Durante quase 400 anos, a escravidão foi legal no Brasil. Mesmo sendo vergonhoso e sem qualquer lei que desse a algumas pessoas o direito de escravizarem outras, a escravidão era legal. Porque a imoralidade era legal. Como hoje está legalizada a maior parte das falcatruas. Como acontece com gastos dos cartões corporativos, com o mobiliário do reitor da UnB e com os palácios construídos pelo setor público.

Construir um palácio para o Judiciário, o Legislativo ou qualquer órgão do governo ao lado de favelas sem água nem saneamento, ao lado de crianças fora da escola, é imoral, mas perfeitamente legal. É uma corrupção nas prioridades, mas é legal. O grave é ser legal.

Quando, durante a construção do prédio do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, dezenas de milhões de reais saíram do orçamento público para os bolsos privados, foi ilegal. Os culpados foram punidos: um perdeu o mandato enquanto outro ficou preso. Mas foi legal colocar no orçamento centenas de milhões de reais para construir o prédio luxuoso do TRT, mesmo que esse dinheiro fizesse falta para escolas, saúde, transporte público, universidades. Só vai preso e perde o mandato quem tira de projetos do Estado para pôr no próprio bolso; mas continua solto quem, legalmente, tira do orçamento do pobre para gastar em projetos que beneficiam os ricos. Porque isso é legal.

Isto é o mais grave: legalizar a falta de ética das prioridades que não atendem às necessidades da população pobre. Nos últimos anos, houve desvio de recursos da educação de base, inclusive da alfabetização, para outros setores, como o ensino superior, e isso foi legal. Seria ilegal tirar esse dinheiro para colocar no bolso do reitor, mas comprar mobília cara e lixeira de luxo está dentro da lei. Isso é grave.

A comunidade acadêmica da UnB está corretamente indignada com o fato de que, no lugar de investimentos em ensino, pesquisa e atividades de extensão, foram feitos gastos no apartamento funcional destinado ao reitor. Em vez de discutir a moralidade dos gastos públicos no Brasil, opta por denunciar apenas a ilegalidade grave de um gasto específico. Como resultado, o processo pode demorar anos e a Justiça ainda pode dizer que foi legal.

Em nome da legalidade, a população acadêmica abre mão de sua responsabilidade, e fica conivente com a corrupção nas prioridades. Por olhar apenas do ponto de vista interno do campus, deixa de criticar o fato muito mais grave de que a administração da UnB pode ter agido legalmente; não percebe que o mais grave é que isso é legal. Ao concentrar-se na legalidade, as elites brasileiras evitam mudar as leis, e assim mantêm o poder de interpretá-las. Porque se torna ilegal comprar lixeira, mas continua legal abandonar a educação de base, deixar 16 milhões de adultos analfabetos.

Por trás das mordomias, dos salários altos, das obras suntuosas e do abandono das prioridades do povo, está o fato de a legalidade ser definida não por valores ou objetivos nacionais, mas pelo poder de grupos de pressão. Na ditadura, era legal o que os militares queriam; na África do Sul, era legal toda a maldade do apartheid. Na Alemanha nazista, Hitler definia o que era legal; no apartheid social brasileiro, é tão legal não aplicar o dinheiro necessário para erradicar o analfabetismo de 16 milhões de adultos quanto comprar lixeiras caras com dinheiro público, para o apartamento do reitor ou para os gabinetes do Judiciário, do Legislativo e do Executivo. Ao nos concentrarmos na lixeira do reitor, evitamos olhar para todas as lixeiras caras espalhadas pelas repartições públicas no Brasil, enquanto falta giz nas escolas e remédios nos hospitais.

O grave é ser legal.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).