Título: Próximo da Esplanada, a miséria extrema
Autor: Lima, Maria
Fonte: O Globo, 24/02/2008, O País, p. 12

Escola em cidade-satélite do DF recebe crianças de famílias pobres e desassistidas, perto do centro do poder

BRASÍLIA. Paulo Henrique, Gabriel e Gabriela sobrevivem no meio do lixo. Dividem um cômodo coberto de lona de plástico fincado na lama com os pais, cachorros de estimação, ratos, pulgas e baratas. Os três irmãos, que moram a pouco mais de 50 quilômetros da Esplanada dos Ministérios, não perdem uma aula na Escola Classe 11 de Taguatinga Sul, cidade-satélite do Distrito Federal. Para eles, a escola, quase tão carente quantos seus 800 alunos, é ¿uma ilha da fantasia¿. Mas não por completo. Ali, todos os dias, o preconceito expõe na sala de aula as dificuldades de uma escola que tenta acolher crianças e adolescentes que vivem debaixo de pontes e nas invasões das redondezas.

¿Esses alunos vivem no último patamar da miséria¿

A diretora Cléria Coelho conta que, convivendo numa mesma sala com colegas um pouco mais abastados, o grupo mais pobre, que chega sem tomar banho há dias, às vezes cheirando a urina e fezes, mesmo uniformizado com camisetas doadas pelas professoras, enfrenta o desconforto de olhares atravessados e é alvo da reclamação dos coleguinhas.

¿ Há alunos que chegam aqui infestados de bichos-de-pé (um parasita). Temos que levá-los ao hospital para os dedos não caírem. As professoras vêem piolhos passeando nas sobrancelhas de outros. Está na moda se preocupar com os bolsões de miséria do Rio de Janeiro, do Nordeste, e se esquecem dos bolsões de Brasília. Esses alunos vivem no último patamar da miséria. Nem bicho vive assim. Mas enxergam na escola a última esperança para sair dessa vida ¿ relata Cléria Coelho.

Sem endereço, mesmo regularmente matriculados, Gabriel, de 14 anos, cursa a 4ª série na mesma sala que Gabriela, de 12 anos, e Paulo Henrique, de 9 anos, da 3ª série. Eles não têm acesso a qualquer tipo de programa social dos governos local ou federal. A mãe, Lina, diz que já tentou de tudo, sem sucesso. Alegam que ela precisa de um endereço. O pai é catador de papel. Vaidosa, a menina e os irmãos capricham para ir à escola. Mas o único banho possível é num poço de água podre empoçaada num fosso de elevador de uma obra abandonada.

Todos os dias é a mesma coisa. Chegam ao local sem fazer barulho para não chamar a atenção do guardador da obra e passam a se limpar, tirando o barro acumulado nos pés e nos chinelos. A mais velha limpa o mais novo. A água que cobre o fosso de quatro metros de profundidade tem cheiro ruim.

Um dos funcionários da obra diz que é esgoto que escorre dos andares abandonados, onde há invasores mas não há banheiros.

¿ Vai lavando logo a cabeça, Paulo Henrique. Quer que ajude a esfregar as costas? ¿ diz Gabriela, carinhosamente cuidando do mais novo.

¿ Andam dizendo que minha menina está ficando muito bonita. Tenho medo de estuprador por aqui. Se fizerem mal a ela eu me mato ¿ diz a mãe, que acompanha os filhos de perto.

Sobra da merenda será distribuída para famílias

De volta ao barraco, do outro lado de um matagal, os três limpam novamente os pés, vestem as camisetas do colégio e deixam para trás uma panela de feijão puro no fogareiro e toda a sujeira do lugar. Antes de entrar na escola e esperar por duas horas e meia pela única refeição do dia, compram três sacolés para enganar o estômago e agüentar a espera.

¿ Tem aluno que chega aqui já passando mal. Como a merenda é servida às 14h30m, quando dá 14h eles não agüentam e fazem fila aqui na minha porta com dor de cabeça e dor de barriga. Ontem tinha uma garotinha branca como algodão. Eu fui à cozinha, peguei restos do almoço dos professores, joguei tudo na panela e fiz um mexidão. Ela comeu com uma carinha tão boa, como se estivesse se deliciando com um manjar dos deuses ¿ conta a diretora.

Segundo Cléria, que esta semana começará a cadastrar as famílias mais carentes para receber sobras da merenda escolar, a Escola Classe 11 tem alunos que vivem no extremo da miséria convivendo com filhos de pequenos empresários.

¿ Não enxergo preconceito, mas muito desconforto das duas partes. Os meninos passam de dois a três dias sem tomar banho e têm vergonha da sujeira. O coleguinha reclama que não vai se sentar perto dele porque está com cheiro de xixi. Aproveito para conscientizar que é preciso conviver com as diferenças e ajudar a facilitar a vida dos que vivem nessa miséria ¿ conta a diretora.