Título: A penúltima despedida
Autor: Harazim, Dorrit
Fonte: O Globo, 24/02/2008, O Mundo, p. 37

Dúvidas sobre legado de Fidel e rumos de Cuba sobrevivem à sua renúncia

Nenhum dono do poder, mesmo quando eleito, gosta da idéia de algum dia voltar para casa. Ditadores, tiranos e monarcas têm ainda menos apreço pela idéia ¿ até por considerarem que sua casa é o poder, ou vice-versa. Já por isso, Fidel Castro pegou meio mundo de surpresa ao anunciar que se aposentava da Presidência de Cuba e do comando do país a partir desta semana.

Ele bem que avisara, quando proferiu seu último discurso, antes da cirurgia de intestino que o tirou de circulação 19 meses atrás, que não governaria até os 100 anos. Naquele 26 de julho de 2006, o recém-octogenário Fidel ainda conseguia discursar durante duas horas e meia (um átimo, para seus padrões oratórios) perante cem mil pessoas (público moderado, para o seu gosto por multidões). Mas, à época, poucos lhe deram crédito pela blague ¿ fosse por temor ou esperança de que el Comandante seria mesmo capaz de se manter no poder até completar 100 anos.

Nem este ano e meio de reclusão forçada e saúde claudicante, nem o início da gestão circunstancial do irmão Raul, eliminaram a desconfiança de que Fidel, sendo Fidel, poderia ressuscitar politicamente de uma hora para outra. Significativamente, nem mesmo a notícia-bomba da aposentadoria voluntária do homem cuja história, há meio século, se confunde com a História do mundo ¿ movimentos revolucionários, Guerra Fria, comunismo versus capitalismo ¿ dá por encerrada a incógnita quanto ao curso a ser tomado por Cuba a partir de agora.

Fidelismo ainda é ideologia única

Dos 11 milhões de habitantes da ilha, 70% nasceram após a revolução castrista de 1959 e portanto jamais experimentaram outra ideologia que o fidelismo. Mesmo quando os 614 deputados eleitos para a Assembléia Nacional tomarem posse, hoje, e escolherem o novo presidente do Conselho de Estado (ou seja, o homem-forte do país), será preciso aguardar o terceiro e definitivo enterro político de Fidel Castro ¿ sua morte física ¿ para poder avaliar o que restará de seu legado.

Vale registrar que o anúncio da renúncia, feito na madrugada da terça-feira passada, foi veiculado em primeira mão pela internet cubana ¿ algumas horas antes da transmissão radiofônica oficial e da chegada às bancas do órgão do partido, o jornal ¿Granma¿. Modernidade tardia para um regime que ao longo de décadas empenha-se em limitar o acesso da população à descoberta do mundo digital. No caso específico de Cuba, cuja arrancada no campo de educação, saúde, medicina e esporte para todos tem servido de porta-estandarte da revolução, a opção pelo cerceamento da informação foi duplamente custosa ¿ representou um retrocesso cruel na formação de toda uma geração altamente educada.

Foi justamente a Escola de Ciências de Computação de Havana que serviu de palco, semanas atrás, para as francas cobranças estudantis ao presidente da Assembléia Nacional de Cuba, Ricardo Alarcón, e que acabaram encontrando seu inevitável caminho até o YouTube.

Obituário político lido ainda em vida

Fidel conseguiu, com o anúncio de sua aposentadoria, ler em vida o que normalmente só consta de obituários ¿ o julgamento que a História, ou pelo menos a imprensa, faz de seu personagem e de seus 49 anos no poder. ¿Um ícone mundial¿, resume a comedida BBC. O também britânico ¿The Guardian¿, elabora: ¿Para o bem ou para o mal, Castro é sem dúvida o líder mais importante a emergir da America Latina desde as guerras de independência do início do século XIX. Embora tenha reinado com poder absoluto, para muitos latino americanos ele contrasta com os ditadores de direita, que freqüentemente priorizam os interesses da elite empresarial e as linhas mestras da política externa de Washington sobre dos interesses de seus eleitores mais pobres¿.

De quebra, Fidel também conseguiu se imiscuir na já atribulada campanha eleitoral dos Estados Unidos, obrigando aquele que será o(a) 11º ocupante da Casa Branca desde o triunfo da revolução dos barbudos de 1959 a se pronunciar sobre a espinhosa questão das relações cubano-americanas.

É tudo o que não gostariam de fazer, nesta reta final e decisiva das eleições primárias, os democratas Hillary Clinton e Barack Obama, ou o favorito republicano John McCain ¿ este já com problemas suficientes para explicar uma relação potencialmente polêmica, e antiga, com uma lobista jovem e loira. Até agora, nenhum dos três principais candidatos se mostrou disposto a romper com a herança mais visível da Guerra Fria nesta parte do hemisfério: o bloqueio econômico americano contra Cuba, que há quase 50 anos demonstra sua ineficácia diplomática e contra-produtividade política. O fato de a Assembléia Geral das Nações Unidas votar há 16 anos contra a medida parece ser irrelevante ¿ na última sessão, de outubro de 2007, houve 184 votos a favor do levantamento do embargo e apenas quatro contra (Estados Unidos, Israel, Palau e Ilhas Marshall).

Já na questão das restrições de viagem e limitação de envio de dinheiro para Cuba, impostas pelos EUA a imigrantes cubanos, Barack Obama tem se mostrado mais conciliador. Também não exclui a hipótese de um encontro com Raul Castro no futuro. Hillary, por sua vez, prefere se alinhar à posição adotada por todo ocupante da Casa Branca: é preciso que ocorra uma ¿mudança significativa¿ no cenário político cubano para justificar uma reavaliação completa das relações entre os dois países. Sem falar na proibição ainda mais radical imposta aos próprios americanos. ¿Não deixa de ser uma incongruência que um cidadão dos Estados Unidos possa viajar ao Irã ou à Venezuela de Hugo Chávez, que representam ameaças reais à nossa segurança e aos nossos interesses econômicos , mas não pode ir a Cuba, cujo governo é uma ameaça tão somente para o seu próprio povo¿, editorializa o ¿Los Angeles Times¿.

A partir de hoje, quando a Assembléia Nacional indicar seu sucessor oficial, Fidel Castro poderá se dedicar integralmente ao que chama de ¿reflexões periódicas¿ sobre a vida. Pretende continuar colaborando com a história de seu país como um mero ¿soldado de idéias¿. Se conseguir manter pacífico e ordeiro o curso da transferência de poder, como tem sido o caso nos últimos 19 meses, a estocada em seus inimigos ideológicos será grande. Se, além disso, Cuba também encontrar uma forma de desmontar sua ditadura, a vitória não será de Fidel, mas dos cubanos.

Segredos marcam trajetória de líder cubano

Encontros com visitantes estrangeiros no subsolo do Partido Comunista

HAVANA. Fidel Castro se retirou do poder envolto no mesmo clima de segredos que o manteve vivo nos tempos da guerrilha e que marcaram grande parte de seus 49 anos no governo. Ele anunciou sua renúncia dizendo que não se recuperara completamente do problema intestinal que o forçou a transferir provisoriamente o poder para o irmão Raúl, em julho de 2006. Mas dúvidas persistem sobre a natureza e a gravidade da doença, considerada segredo de Estado, e sobre seu paradeiro.

Como um jovem revolucionário, o carismático fidel teceu uma rede de segredos para frustrar inimigos, e acabou chegando ao poder com a revolução de 1959. As precauções o ajudaram a sobreviver a numerosas tentativas de assassinato ¿ muitas delas planejadas ou apoiadas pela CIA ¿ nos primeiros anos do regime.

Como líder cubano, sua participação em cúpulas no exterior somente eram confirmadas após a chegada. A localização de sua residência também é um segredo antigo, embora rumores indiquem que se trata de um complexo ¿ ao qual se referem como Ponto Zero ¿ no bairro de Siboney, em Havana. A vida privada de Fidel nunca foi discutida por funcionários do governo ou tratada pelos jornais estatais. Os cubanos, em geral, dizem não ter pistas sobre sua família. Poucos sabem que ele é casado com Dalia Soto del Valle, uma professora com quem teve cinco filhos, todos com nomes começando com ¿A¿.

A aura de mistério continuou após a cirurgia de emergência em julho de 2006. Ele disse que a inimizade de Washington justificava transformar sua saúde numa questão de segurança nacional. Um médico espanhol visitou Fidel no final de 2006, e fontes na Espanha contaram mais tarde que o líder cubano sofrera uma grave infecção intestinal após uma operação mal sucedida. Mas detalhes sobre a doença que transformou Fidel num frágil idoso nunca foram publicados em Cuba, nem os cubanos sabem onde ele se recupera.

Vários líderes estrangeiros que visitaram Fidel em 2006 contaram que foram levados para encontrá-lo no subsolo do quarte-general do Comitê Central do Partido Comunista, na Praça da Revolução, em Havana.

Acredita-se que esteja convalescendo no Hospital Cimeq ou em suas imediações, um centro médico para autoridades cubanas no oeste de Havana.

Ao anunciar sua aposentadoria, Fidel disse ter tomado a decisão dois meses antes e que dera uma pista de seus planos numa carta a um jornalista da TV estatal, em dezembro. ¿Nem o destinatário conhecia a minha intenção¿, escreveu ao anunciar sua saída.