Título: Apostas numa revolução cultural à cubana
Autor: Aggege, Soraya
Fonte: O Globo, 24/02/2008, O Mundo, p. 38

Para analistas, renúncia de Fidel deve acelerar "relaxamento" social como o que ocorreu na Espanha com a queda de Franco

SÃO PAULO. Liberdade, pero no mucho. É assim a onda das liberdades individuais vivida por Cuba - e que pode ser embalada pela renúncia de Fidel Castro. São permitidos casamento gay, cirurgias para troca de sexo, dólares na carteira, consultas populares, internet livre, autorização para viajar e até John Lennon virando nome de praça. Por outro lado, ainda não se cogita a liberdade de discordar do regime comunista cubano. É o que avaliam especialistas consultados pelo GLOBO.

- Não assistimos a uma revolução cultural no sentido chinês, mas sim no sentido cubano, o que é muito diferente - diz o venezuelano Rafael Villa, professor do Instituto de Relações Internacionais e do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de São Paulo (USP).

Para o especialista, o chamado "relaxamento cultural" de Cuba - cuja cultura tem sido homofóbica - causa poucos problemas ao regime e jamais atingirá sua essência, que é o controle político exercido pelo partido sobre a sociedade cubana.

Revolução ainda tem apoio social, diz analista

Segundo Villa, a "revolução cultural cubana" pode ser inclusive uma forma de se manter o controle sobre a sociedade e mandar, ao mesmo tempo, sinais de boa convivência ao mundo globalizado. Afinal, Cuba precisa atrair simpatia e investimento estrangeiros.

- Internamente, apesar dos desgastes, a revolução ainda tem muito apoio da sociedade, apesar, é claro das dissidências. A revolução acabou com pobreza extrema e aplicou em educação e saúde. Assim, o regime ainda se legitima socialmente. (Promover) pequenas mudanças, ouvir mais os apelos, pode ajudar na manutenção do regime - afirma Villa.

Para o historiador argentino Osvaldo Coggiola, autor de livros sobre revoluções comunistas e professor da USP, Cuba vive uma revolução cultural às avessas. Ele frisa que, ao contrário de Mao Tsé-tung, Fidel decidiu preparar sua sucessão e tem todas as mudanças planejadas. Mas, de acordo com Coggiola, apesar de escolher um destino diferente do de Mao e sua Revolução Cultural, Fidel escolheu uma saída quase à chinesa:

- As mudanças serão, de certa forma, mais ao estilo chinês, preservadas as diferenças, claro. Fazem alguma abertura econômica, mas sem qualquer abertura política. Pode-se até dar alguma liberdade individual, sexual até. Em Xangai, um homem até pode rodar bolsinha, mas se pensar em fundar um partido político, será preso. E em matéria de costumes, os cubanos são até mais abertos que os chineses - afirma Coggiola.

Rumo a um "espairecer cultural"?

Para o especialista, a abertura econômica também se dará com controle absoluto do Estado. Ele frisa que as Forças Armadas devem aumentar o seu papel como instrumento legitimador e de controle do Estado.

- Muitas das propriedades hoje são controladas pelas Forças Armadas, que terão um papel-chave nesse controle. A própria população identifica mais as Forças Armadas com a revolução do que o próprio Partido Comunista - afirmou.

Já o cientista político João Paulo Veiga, da USP, avalia que pode haver uma espécie de glasnost, que, no estilo cubano, seria um "espairecer cultural", como aconteceu na Espanha após a queda do franquismo e que resultou, por exemplo, na movida madrilenha. Para Veiga, alguns sinais de abertura no campo político podem vir à tona, sem alterar a substância do regime.

- A revisão dos julgamentos de alguns presos políticos, uma anistia tímida, mas cheia de simbologia, e novos instrumentos de aperfeiçoamento do sistema de representação política na ilha podem ser respostas ao desconforto de grupos de interesse domésticos que pressionam, timidamente, por mudanças internas - diz ele.

A madrinha da liberação sexual

Filha de Raúl Castro luta por direitos de grupos marginalizados no país comunista

Legenda da foto: MARIELA DÁ entrevista em evento sobre abuso sexual contra crianças em Havana: trabalho com grupos marginalizados

SÃO PAULO. Considerada a fada-madrinha das liberdades sexuais em Cuba, a filha do presidente interino Raúl Castro, Mariela Castro Espín, diretora do Centro Nacional de Educação Sexual (Cenesex), continuará tendo papel marginal na política, segundo especialistas. Mas o fato de ser sobrinha de Fidel e filha de Raúl com a feminista e revolucionária Vilma Espín (que até sua morte, ano passado, presidiu a Federação de Mulheres Cubanas) garante um certo trânsito de Mariela junto à cúpula cubana.

Mariela é sempre descrita como uma mulher muito atraente, na faixa dos 40 anos, culta e descontraída. Ela atua junto a grupos marginalizados em Cuba, muitas vezes reprimidos pelo fato de apresentarem o que se chama de "condutas negativas" aos olhos da revolução - entre eles gays, lésbicas, transexuais e travestis.

- Ela defende as minorias, mas esses grupos têm muito pouco espaço político. As mudanças reais só acontecem de "dentro para dentro em Cuba", nunca da sociedade para dentro da cúpula - diz o analista Rafael Villa.

Em reportagem na revista "New Yorker" em 2006, o jornalista americano Jon Lee Anderson conta que o presidente da Assembléia Nacional cubana, Ricardo Alarcón, lhe disse que Mariela o estava "enlouquecendo" com seu lobby para reformar leis em favor dos transexuais e travestis. Frei Betto, escritor brasileiro que é amigo dos Castro, diz que tem notado a redução do preconceito contra gays em Cuba.

- Eles têm investido muito em educação sexual nas escolas - afirma.

Na última década, as políticas oficiais foram relaxadas, mas as leis que garantem a liberdade sexual ainda não existem. Tanto Mariela quanto Ricardo Alarcón deixaram claro a Lee que a batalha de idéias iniciou uma espécie de abertura social e cultural. (S.A.)