Título: Etnia ou cidadania
Autor: Magnoli, Demétrio
Fonte: O Globo, 21/02/2008, Opinião, p. 7

A História imprimiu uma cruz sobre os Bálcãs. Seu eixo vertical é uma linha de fratura cultural traçada a partir da divisão do Império Romano, pelo Cisma do Oriente, no Ocidente, dos cristãos ortodoxos, no Oriente. Seu eixo horizontal é uma fratura cultural mais recente, derivada da expansão turco-otomana, que separou populações muçulmanas, no Sul, dos cristãos, no Norte. Uma camada de linhas mais tênues superpõe-se a essa estrutura e define grupos étnicos: sérvios, croatas, eslovenos, macedônios, albaneses, húngaros, gregos. Kosovo é um fragmento dessa coleção balcânica, ele mesmo dividido internamente pelo eixo horizontal que separa a maioria albanesa muçulmana da minoria sérvia ortodoxa.

A primeira Iugoslávia emergiu como Grande Sérvia, das ruínas dos impérios austro-húngaro e turco-otomano. A segunda Iugoslávia emergiu em 1946, da catástrofe étnica que tragou aquele experimento nacionalista. Na hora da sua implosão, em 1991, o Estado criado por Josip Broz Tito ganhou um diagnóstico sintético, cunhado pelo jornalista Norman Stone: "A Iugoslávia tinha seis repúblicas, cinco povos, quatro línguas, três religiões, dois alfabetos e um partido - o comunista."

O pilar constitucional da Iugoslávia de Tito era a distinção entre cidadania e nacionalidade. Os iugoslavos eram cidadãos tanto da Iugoslávia quanto de sua república federal, mas podiam escolher, por decisão individual, a sua nacionalidade. O sistema nunca funcionou genuinamente, pois a cidadania é um contrato amparado na democracia - e a Iugoslávia era uma ditadura de partido único. No fim das contas, a solda da unidade era o monopólio da política pelo partido comunista. Quando essa solda se dissolveu, o Estado começou a se estilhaçar em fragmentos cada vez menores.

Mas a reação em cadeia não é um destino inscrito na história profunda e nos mistérios da cultura. A balcanização dos Bálcãs, hoje, é um fruto direto da existência da União Européia e das estratégias políticas dos governos dos EUA e das potências da Europa.

O "princípio das nacionalidades", proclamado por Woodrow Wilson na Conferência de Paris de 1919, ressurgiu nos Acordos de Dayton, de 1995, quando nasceu a Bósnia independente, sob o patrocínio americano. Mas Bill Clinton e seu negociador, Richard Holbrooke, rejeitaram a partição completa da Bósnia segundo linhas étnicas e articularam o compromisso que originou uma confederação multinacional composta pelas repúblicas muçulmano-croata e sérvia. A preservação de uma entidade bósnia decorreu das lições de sangue oferecidas pela História e do complexo mapa bósnio, no qual as fronteiras étnicas passam no meio dos quartos dos casais.

Agora, a ambivalência desapareceu, dando lugar à aplicação de um impiedoso "princípio das etnias". Montenegro, que declarou sua independência da Sérvia há dois anos, começou a inventar-se como nação étnica em 1993, fabricando às pressas um passado autônomo e uma língua nacional. A sua soberania não passa de uma casca vazia, preenchida pelo conteúdo emprestado das instituições e da moeda da União Européia. Kosovo nasce agora como mais um protetorado da União Européia, defendido por tropas européias, estabilizado por policiais europeus e dotado de um corpo de leis escrito por um exército de juristas enviado por Bruxelas.

As elites políticas adventícias nos fragmentos dos Bálcãs aprenderam com as experiências recentes que têm o poder de erguer Estados como crianças esculpem castelos de areia - com a condição de se associarem aos poderes da Europa. A mensagem emitida pelas suas aventuras ecoa na minoria sérvia de Kosovo, que reivindicará mais uma secessão, entre líderes sérvios na Bósnia, que mantêm a esperança de explodir a confederação, e entre nacionalistas albaneses e gregos da Macedônia. Muito além dos Bálcãs, o precedente de Kosovo estimula a Rússia a invocar o "princípio das etnias" e jogar a carta do separatismo na Geórgia e na Ucrânia. O triunfo da política do sangue representa a derrota da democracia e do princípio da cidadania e a promessa de guerras sem fim.

DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br.