Título: Nem uma molécula
Autor: Figueiredo, Janaína; Oliveira, Eliane
Fonte: O Globo, 23/02/2008, Economia, p. 33

Brasil diz que não abre mão de gás boliviano e vai recorrer a multa se contrato não for cumprido.

Ogoverno brasileiro endureceu o tom nas discussões com seus vizinhos e sócios no Mercosul e disse que não está disposto a ceder "uma molécula do gás importado da Bolívia" para ajudar a evitar uma nova crise energética no mercado argentino. Os bolivianos foram avisados, inclusive, que poderão ser multados, caso o gás contratado não seja fornecido. A rigidez do Brasil no tratamento dessa questão é evidente quando se considera a série de derrotas sofridas no ano passado nas negociações com o governo boliviano e que forçaram a Petrobras a se retirar das áreas de distribuição e refino de gás no país vizinho, no ano passado.

Um dia antes do encontro entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e os líderes da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, e da Bolívia, Evo Morales, em Buenos Aires, o presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, foi encarregado de comunicar publicamente a posição brasileira, como resposta às pressões dos vizinhos para reduzir suas importações de gás em solidariedade aos argentinos.

- É impossível abrir mão de qualquer molécula de gás da Bolívia. Não é que a Petrobras não queira dar o gás para a Argentina. A gente precisa do gás. Isso não significa que Petrobras e o governo não estão sensíveis ao problema argentino - afirmou o presidente da estatal brasileira, argumentando que, dependendo da emergência da situação, o Brasil pode ceder energia hidrelétrica, termelétrica ou óleo combustível ao país vizinho.

Bolívia quer evitar punições

Os bolivianos insistem em dobrar o governo brasileiro para que a Petrobras reduza, voluntariamente, suas compras porque, segundo fontes da estatal, as multas são pesadas e cobradas por milhão de metros cúbicos. Pelo contrato, se o Brasil não comprar a quantidade programada, também é punido. Gabrielli revelou que o vice-presidente boliviano, Álvaro Garcia Linera, pediu recentemente ao Brasil que flexibilizasse seu contrato (de 30 milhões de metros cúbicos diários de gás) para permitir o aumento das vendas de gás para a Argentina (embora o contrato com o governo Kirchner fixe a exportação de 7,7 milhões de metros cúbicos diários, a Bolívia vende hoje apenas 2,5 milhões).

No encontro entre Lula e Cristina, na Casa Rosada, o presidente brasileiro adotou um discurso franco e direto. Segundo o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, na conversa com a presidente argentina Lula expôs as necessidades do Brasil e descartou a possibilidade de o país diminuir suas importações.

- O Brasil precisa de todo o gás, mas temos a disposição de ajudar. Existem outras alternativas - declarou Amorim.

Por sugestão de Lula, hoje participarão do encontro trilateral representantes dos ministérios de Minas e Energia e da Petrobras. Em entrevista ao canal de TV "Telesur", o ministro de Hidrocarbonetos da Bolívia, Carlos Villegas, declarou que "esta é uma reunião excepcional, porque nos próximos anos a Bolívia poderá cumprir os compromissos assumidos com a Argentina".

O presidente da Petrobras negou as versões sobre supostas ameaças do governo argentino contra a estatal. Segundo a imprensa argentina, a Casa Rosada poderia criar obstáculos às operações da Petrobras na Argentina, caso a empresa não ajude o país nas negociações com a Bolívia.

- Temos uma relação de amor e ódio com o governo argentino - brincou Gabrielli.

Ele lembrou que a Petrobras investiu mais de US$2 bilhões nos últimos quatro anos na Argentina e prevê investir mais US$3 bilhões nos próximos quatro anos. Gabrielli negou que a estatal brasileira tenha feito uma oferta pelos ativos da Exxon na região e que essa iniciativa tenha criado atritos com o governo local.

Durante a visita, Lula e Cristina assinaram o acordo de criação de uma binacional de enriquecimento de urânio para fins pacíficos. Os dois países terão 120 dias para estudar o formato da nova empresa e, já em março, haverá o primeiro encontro de uma comissão de técnicos e pesquisadores brasileiros e argentinos para dar início às negociações. Será construído um reator nuclear de potência que atenda às necessidades dos sistemas energéticos brasileiro e argentino e, num futuro próximo, a toda a região. Pelo entendimento, até o fim de agosto, será concluído um projeto comum referente ao "ciclo de combustível nuclear", tido como alternativa às fontes de energia tradicionais.

Acordo prevê construção de usina

Na declaração, assinada por Lula e Cristina Kirchner, estão ainda previstas a construção de um satélite de observação oceânica e a retomada do projeto de implementação do complexo hidrelétrico de Garabi, em discussão desde a década de 80. As obras serão tocadas, do lado brasileiro, pela Eletrobrás, e do argentino, pela Empreendimentos Energéticos Binacionais Sociedade Anônima (Ebisa).

- Vamos lançar um satélite conjunto e desenvolver programa de cooperação pacífica em matéria nuclear que será exemplo para um mundo conflagrado pela tentação armamentista e pela intolerância política e ideológica - afirmou Lula.

Outros acordos firmados ontem consistem na implementação da moeda local no comércio bilateral, substituindo o dólar por peso ou real; na construção de mais uma ponte ligando os dois países; e na formação de um complexo ferroviário bioceânico ligando os portos do Atlântico, no Brasil, ao Pacífico, no Chile. Os dois países também se preparam para assinar um tratado de livre circulação de pessoas. Na área de defesa, foram firmados acordos para a fabricação de aeronaves e de carros militares.

(*) Correspondente (**) Enviada especial