Título: Avanços na sucessão americana
Autor: Mercadante, Aloizio
Fonte: O Globo, 02/03/2008, Opinião, p. 7

Neste ano, o povo norte-americano elegerá quem vai presidir a única superpotência do planeta e a maior economia mundial. Especula-se sobre as mudanças que essa troca de comando poderá trazer para o cenário internacional e as relações Brasil/EUA. Contudo, elocubrações sobre novos contextos nas relações Brasil/EUA têm de partir da constatação de que elas estão num patamar que é descrito, até por críticos da política externa brasileira, como "excelente". Com efeito, contrariando aqueles que acusavam o governo atual de "antiamericano", o presidente Lula conseguiu estabelecer com os EUA relações bastante positivas, mesmo com as divergências relativas à Alca e à guerra no Iraque. Tais relações estão embasadas em interesses comuns que dizem respeito à segurança hemisférica, à consolidação das democracias da região e às fontes renováveis de energia. Assim, é pouco provável que as eleições nos EUA acarretem conseqüências negativas no nosso relacionamento bilateral, qualquer que seja o resultado do pleito.

Embora os "divisores de águas" dessa eleição sejam a guerra no Iraque e a estratégia de combate ao terrorismo, o que tende a manter o status secundário da América Latina no debate norte-americano sobre política externa, as diferentes perspectivas dos candidatos suscitam reflexões sobre o futuro das nossas relações.

Do virtual candidato do Partido Republicano, senador John McCain, liderança renovada do conservadorismo, espera-se a continuação da política unilateralista do governo Bush. McCain defende a criação de uma "Liga das Democracias", que reuniria países com interesses convergentes aos dos EUA, com o intuito de enfrentar os desafios mundiais. Embora McCain afirme que essa Liga não suplantaria a ONU, é evidente que a sua criação poderia enfraquecer o sistema de segurança coletiva das Nações Unidas, com prejuízos para as nações que, como a nossa, estão comprometidas com o multilateralismo. Também não seria positivo para os interesses brasileiros a sua intenção de redinamizar a negociação da Alca ampla, o que poderia enfraquecer o Mercosul, e de isolar lideranças "nefastas" no continente, como a de Hugo Chávez, o que redundaria em tensões regionais. Porém, McCain faz referências muito elogiosas ao Brasil. Para ele, a liderança do Brasil na missão da ONU no Haiti é um modelo para a promoção da segurança hemisférica. McCain chega a afirmar que lideranças democráticas como as do Brasil e da Índia deveriam substituir a Rússia no G8. Portanto, ainda com a continuação da atual política externa norte-americana, o Brasil poderá aprimorar as suas relações com os EUA.

Já da senadora Hillary Clinton espera-se, além da retirada das tropas do Iraque, nova ênfase na negociação diplomática e no uso das instituições multilaterais para a solução dos conflitos. Hillary conta a seu favor experiência e uma equipe que fez parte do governo mais bem-sucedido da História recente dos EUA. Ademais, a sua eleição seria uma homenagem às mulheres do continente, a exemplo do que aconteceu no Chile e na Argentina. Mas o seu voto a favor da guerra do Iraque revela certo alinhamento às posições conservadoras, que poderá inibir mudanças na política externa dos EUA.

Mudanças substantivas poderão advir de Barack Obama. Carismático e com grande poder de mobilização, Obama é crítico incisivo e de primeira hora da política unilateralista do atual governo. Se eleito, Obama afirma que não apenas retirará as tropas do Iraque, mas também fechará a prisão de Guantânamo e restaurará o habeas corpus para os acusados de terrorismo. Ademais, o senador promete conversar com todas as lideranças com as quais os EUA têm divergências, em vez de tentar isolá-las. Essa mudança no modus operandi da afirmação dos interesses dos EUA no mundo poderá restaurar saudável multilateralismo, evitar conflitos e criar novas oportunidades de cooperação. Além disso, Obama tenciona empenhar os EUA numa luta contra a pobreza, especialmente na África. Observe-se que pontos importantes da proposta de Obama (ênfase na negociação diplomática e no multilateralismo, compromisso com a diminuição das desigualdades) convergem com as diretrizes da política externa brasileira. Desse modo, a eleição de Obama poderia configurar cenários mundial e hemisférico muito favoráveis aos interesses brasileiros .

Assim como a de Lula no Brasil, a eleição de Obama nos EUA seria considerada altamente improvável há poucos anos. Ambos têm em comum, além dessa improbabilidade, a coragem de propor mudanças e uma disposição incomum para negociá-las.Trata-se de excelente combinação, tanto para o Brasil quanto para os EUA.

ALOIZIO MERCADANTE é senador (PT-SP).

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