Título: O General do Papa
Autor: Casado, José
Fonte: O Globo, 02/03/2008, O País, p. 16

Dom Eugenio Sales abrigou no Rio mais de quatro mil pessoas perseguidas pelos regimes militares do Cone Sul entre 1976 e 82

No fim de uma tarde do outono de 1976, o secretário entrou no gabinete e surpreendeu o cardeal com um papel e o relato de um imprevisto: na portaria estava um jovem, sem documentos, que dizia-se fugitivo da ditadura militar instalada havia seis semanas na Argentina. Estivera no Chile, mas temera pela vida no país do general Augusto Pinochet. Recorreu à arquidiocese de Santiago, onde lhe deram esperança, traduzida em uma única linha naquele manuscrito: "Rua da Glória 446, Rio" - o endereço do Palácio São Joaquim, escritório e residência do cardeal-arcebispo Eugenio de Araujo Sales.

- Até então, nunca tinha trabalhado com refugiados políticos, só com o pessoal daqui - conta o cardeal Sales, 32 anos depois."Pessoal daqui" eram presos políticos da ditadura brasileira que acabava de completar 12 anos, a quem visitava nas celebrações de Natal e Páscoa.

"Eu tinha o dever de receber os refugiados"

-- Eu disse a ele: "Cândido (da Ponte Neto, o secretário), eu vou rezar e amanhã a gente conversa" - recorda o cardeal. - E fui rezar. Havia um quadro e um crucifixo grande na parede. Foi um drama. Com o crucifixo na mão, eu pensava: "Como cidadão brasileiro não posso receber montonero, tupamaro, aqueles refugiados que vinham... Se entravam no país, se passavam para o território brasileiro..." Em seguida, repensava: "Agora eu, como pastor, tenho o dever de receber..." Aí está o drama todo: eu tinha o dever de receber. Depois, quando Cândido voltou, eu disse logo: "Assumo".

- Então, ele foi para o telefone vermelho e pediu para falar com o general Sylvio Frota -- relata o secretário.

Formavam uma dupla improvável. O da farda, suburbano do Grajaú, compunha uma figura redonda, de nariz adunco, fala fina e sempre prolixo. "Curto de idéias", na impressão registrada em documentos pessoais por seu chefe, o presidente Ernesto Geisel. O da batina, sertanejo de Acari (RN), magro, alto, de fala seca e baixa, quase monocórdica, sempre cuidadoso no palavreado, era reconhecido no governo como um general do Papa em cruzada anticomunista.

Mantinham uma relação cordial há meia década. Frota, católico convicto, chefiara o I Exército no Rio no governo Emílio Medici - período de uma "guerra em que homens dizimavam-se", definiu em autobiografia. Não foi bem assim. Nos 21 meses sob o seu comando (de julho de 1972 a março de 1974), o Destacamento de Operações Internas do I Exército deixou um rastro de 29 mortos, quase todos jovens estudantes, e produziu peculiares encenações de confrontos com terroristas nas ruas, carbonizando cadáveres de prisioneiros dentro de automóveis no Grajaú (3) e em Jacarepaguá (4). Havia dois anos era ministro do Exército, segundo cargo em importância no governo militar, e sonhava com a cadeira do general-presidente, Ernesto Geisel, cuja administração achava dominada por "um espírito esquerdista".

Quando o cardeal telefonou, o general ruminava uma desdita: no início do ano, Geisel demitira um dos seus principais aliados do comando do II Exército (São Paulo), depois do anúncio do 39º suicídio do regime militar e o 19º por enforcamento. Frota não admitia. Para ele, a morte do operário Manoel Fiel Filho na tortura fora mais um caso de "auto-eliminação" - um típico "lenitivo para a angústia" de prisioneiro depois do interrogatório, como interpretou nas memórias. Na crise da exoneração do comandante de São Paulo, o presidente só recebera um telefonema de apoio - o do cardeal Sales.

- Chamei o Frota, no telefone vermelho - conta o cardeal, hoje com 87 anos. - Ele era um "peso-pesado", aliás "pesadíssimo". E falei: "Frota se você receber comunicação de que comunistas estão abrigados no Palácio São Joaquim, de que estou protegendo comunistas, saiba que é verdade, eu sou o responsável. Ponto final, ponto final." Ele não disse nada, nunca reclamou e nem fez cara feia.

Nos jardins do palácio, o retrato da diáspora

A partir daquele outono de 32 anos atrás, o Rio serviu de refúgio para mais de quatro mil refugiados das ditaduras na Argentina, no Chile, no Uruguai e no Paraguai, como registram arquivos da arquidiocese, da Cáritas local, da Comissão Brasileira de Justiça e Paz e do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).

Entre 1976 e 1982, os jardins e o pátio interno do Palácio São Joaquim, na Glória, retrataram o cotidiano dessa diáspora sul-americana, com os argentinos em esmagadora maioria. Ironia da História: jóia da influência do ecletismo na arquitetura local, na transição para o século XX, o palácio episcopal saiu da prancheta de Adolfo Morales de Los Rios, arquiteto espanhol que desembarcara na cidade por volta de 1890 como refugiado político.