Título: Um legado de desigualdade
Autor: Oswald, Vivian
Fonte: O Globo, 02/03/2008, O Mundo, p. 39
Provável sucessor de Putin, Medvedev receberá país próspero, porém com enorme abismo social.
Na vitrine de um centro comercial vizinho à Praça Pushkin, ponto de encontro de namorados e de manifestações políticas, chamam atenção os preços das pilhas de perfumes expostos na vitrine. Mais de US$1.200 o vidro de 30 mililitros daquele que se auto-intitula na embalagem "o perfume mais caro do mundo". Esta semana, a revista russa "Finans" publicou a nova lista dos bilionários da Rússia. As 500 pessoas mais ricas do país detêm um patrimônio que equivale à metade do PIB russo. Poucos metros mais adiante, duas aposentadas pedem esmola aos transeuntes. Uma delas canta uma ária para estimular a generosidade alheia. A primeira diz que recebe pensão equivalente a US$100, e a segunda, US$160 - o que é pouco para a cidade considerada por dois anos seguidos pela revista "Forbes" como a mais cara do mundo. Fora do centro de Moscou, que enriquece a olhos vistos nos últimos anos, a realidade pode ser ainda mais dura para o cidadão.
Esta é hoje uma das maiores mazelas enfrentadas pelos russos, que ainda se queixam de inflação e baixa qualidade do sistema de saúde. E é este o país que deve receber o vice-premier Dmitri Medvedev das mãos do mentor e provável primeiro-ministro, Vladimir Putin.
- Os mais velhos às vezes são nostálgicos dos velhos tempos, quando tinham a aposentadoria garantida. Agora, as diferenças entre ricos e pobres são enormes. Os últimos anos foram duros para a Rússia. Passamos em 30 anos o que outro país levaria cem anos para viver - afirma ao GLOBO Ludmila Fomicheva, diretora da agência russa de notícias Interfax, que trabalhou com Putin e Medvedev no final da década de 90 em São Petersburgo.
De volta à lista dos 11 maiores
De maneira geral, no entanto, a economia vai muito bem. Já não há quase vestígios daquela Rússia que derrubou os mercados globais há exatos 10 anos, pouco antes de Putin assumir o poder. Humilhada pelo fim da União Soviética e pela crise econômica sem precedentes na qual mergulhou na década de 90, sobretudo após as reformas e a corrupção que acompanharam a mudança do sistema, a Rússia nunca esteve tão bem economicamente. Fechou 2007 com o maior nível de expansão dos últimos seis anos: 8,1% do PIB. Na média, tem crescido a mais de 7% anualmente. Graças aos níveis recordes dos preços do petróleo e a reformas recentes, o país voltou a figurar na lista dos 11 maiores do mundo, com um PIB superior a US$1,3 trilhão.
Também muda a composição social da Rússia que está sendo entregue a Medvedev. Se por um lado as desigualdades são cada vez mais profundas, por outro há o surgimento de uma classe média numerosa. A sensação geral é de que, mal ou bem, todos ganharam durante os dois mandatos de Putin. E por isso, mais de 60% da população acham que o país está num bom caminho, de acordo com o Centro Iuri Levada. Ainda que reconheçam que a situação não é perfeita.
Tudo isso serviu para que os russos se apegassem à inédita estabilidade econômica e política e deixassem, pelo menos neste momento, em segundo plano questões como a liberdade de expressão. O tema sequer consta da lista de prioridades da população, segundo sondagens recentes. O cidadão se considera mais livre hoje do que no passado.
No último encontro com as figuras mais importantes da cena política da Rússia, Putin apresentou um plano de desenvolvimento para o país até 2012, incluindo as ações sociais tão esperadas pelo público. Este deve ser o roteiro a ser seguido por Medvedev, que já deu a entender que pretende complementá-lo com medidas como a redução da ingerência do Estado na direção das empresas estatais, a reforma e a independência do Judiciário.
Especialistas afirmam que o início do primeiro mandato de Putin foi marcado por reformas que teriam então minguado na mesma medida em que foram subindo os preços do petróleo. As questões sociais também teriam sido deixadas para depois. Ficam na pauta ainda a produção pouco diversificada e dependente de gás e petróleo e a importante queda populacional registrada nos últimos anos.
No último discurso antes de deixar o cargo, Putin disse que a Rússia será o melhor lugar para se viver e deve estar entre as cinco maiores economias do mundo nos próximos 10 ou 15 anos. Medvedev recebe, portanto, um legado, mas com ele, uma cartilha.
Hoje, os russos vão às urnas votar para presidente pela quinta vez desde o fim da União Soviética. A vitória de Dmitri Medvedev é dada como certa. Concorrem ainda outros três candidatos: os veteranos Gennady Zyuganov, líder do Partido Comunista, e Vladimir Jirinovski, líder do nacionalista LDPR. Há ainda o jovem desconhecido líder do Partido Democrático, Andrei Bogdanov.
De acordo com a Comissão Central Eleitoral da Rússia, cerca de 300 observadores internacionais acompanham o pleito. O Escritório para Instituições Democráticas e Direitos Humanos (ODIHR) da Organização para Segurança e Cooperação da Europa (OSCE) não enviou seus monitores ao país. Este é o segundo pleito consecutivo a ser boicotado pela organização, que é considerada uma das mais importantes do mundo pelo Ocidente. A Rússia considerou a decisão inaceitável.