Título: Morales parte para o confronto
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Fonte: O Globo, 01/03/2008, O Mundo, p. 42

Presidente da Bolívia abandona negociação com oposição e convoca referendo sobre Constituição

LA PAZ

Opresidente Evo Morales desistiu das negociações com a oposição e partiu ontem para o confronto direto com partidos conservadores e movimentos regionalistas do interior da Bolívia. Ele promulgou ontem de manhã a convocação de um referendo para aprovar a sua polêmica proposta de Constituição e proibiu os referendos de autonomia de departamentos (províncias) como Santa Cruz, depois de uma sessão do Congresso no qual seguidores do presidente impediram a entrada de opositores, agredindo até mulheres.

- Hoje sinto que novamente o povo boliviano faz história - disse Morales, num ato para seus partidários diante do palácio presidencial. - Só com a força do povo podemos garantir as transformações profundas, com o povo organizado e mobilizado.

Com as expressões "força do povo" e "povo mobilizado" Morales parecia se referir aos controversos acontecimentos da noite anterior no Congresso boliviano. Deputados e senadores tinham sido convocados para uma semana de diálogo, numa tentativa de negociar uma saída do impasse político no país. Porém, desde o primeiro dia das discussões, segunda-feira passada, o Parlamento esteve cercado por milhares de indígenas, camponeses e mineiros, membros de movimentos sociais ligados ao governo.

Anteontem, porém, as manifestações diante do Congresso se tornaram violentas, com a multidão exigindo que fosse convocado um referendo para a Constituição sem discussão. A proposta da Carta fora aprovada apenas pelo partido do governo, o MAS, e por maioria simples, sem respeitar a lei que exige dois terços dos votos e dentro de um quartel - e as negociações visavam a encontrar consenso sobre ela. Os manifestantes chegaram a atirar artefatos explosivos no Congresso para ameaçar a oposição.

Vice-presidente controla votação

A partir da tarde de ontem, a multidão passou a impedir que congressistas da oposição entrassem. O deputado governista Gustavo Torrico indicava para mineiros e indígenas quem podia entrar e quem devia ser barrado. A deputada conservadora Ninoska Lazarte tentou entrar e tomou uma pancada com um capacete pelas costas. Ao se virar, foi empurrada e caiu no chão. Ele teve os cabelos e as roupas puxadas e várias pessoas cuspiram nela. Segundo a deputado do Podemos, ela não foi empurrada para o meio da multidão devido à intervenção de jornalistas. Ao deixar o local, os manifestantes fizeram um "corredor polonês" e, enquanto ela passava, foi insultada, chutada e recebeu tapas.

- Se não fossem os jornalistas, me linchariam. Estamos numa ditadura.

Três horas depois, a deputada oposicionista Marisol Abán tentou entrar. Ela recebeu socos e pauladas e teve a carteira roubada. Outras pessoas também foram agredidas, enquanto policiais nada faziam.

Dentro do Congresso, depois que os parlamentares governistas já tinham entrado, o mesmo deputado Torrico pediu a palavra ao presidente da Câmara, o também vice-presidente do país Álvaro García Linera. Ele pediu a alteração da pauta original e uma votação para a convocação do referendo. Sem respeitar a obrigatoriedade de o assunto passar por comissões parlamentares antes de ir ao plenário, uma votação foi convocada. Porém, em vez de votos individuais (que poderiam revelar a falta de quórum, como acusou a oposição), Linera pediu que os congressistas apenas levantassem as mãos, concluindo que dois terços tinham aprovado as medidas.

Com a votação, foi estipulado que no dia 4 de maio a população votará a proposta de Constituição. Além disso, um plebiscito no mesmo dia definirá se a lei de reforma agrária desapropriará latifúndios com mais de cinco mil ou dez mil hectares. Um terceiro ponto foi tornar ilegal os referendos autonômicos marcados por alguns departamentos - a convocação de tais votações deve ser feita pelo Congresso. Dois estados já têm referendos marcados, o maior deles, Santa Cruz, para o mesmo dia 4 de maio.

- Quando não se atendem as demandas, há protestos - disse ontem Morales, aparentemente defendendo os agressores do dia anterior.

O presidente do Senado, o oposicionista Óscar Ortiz, se reuniu ontem com representantes diplomáticos de países europeus e sul-americanos:

- Pedimos que eles revisem suas relações com o governo de Evo Morales, porque já não é um governo que esteja dentro do marco da democracia. É um presidente que, igual aos ditadores, atropelou a Constituição, o Congresso e está ameaçando a paz e a unidade dos bolivianos.

- Qual a diferença em se impedir que parlamentares exerçam a democracia com tanques e fuzis ou com dinamite, facões e golpes, como ontem? - perguntou o ex-presidente Jorge Quiroga, da oposição.

Os departamentos que pretendem conquistar maior autonomia em relação a La Paz - Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija - disseram ontem que mantém as datas dos referendos, e farão uma reunião domingo. Cerca de 90% do gás do país está neles.