Título: O Vaticano pediu e eu preferia dialogar e salvar
Autor: Casado, José
Fonte: O Globo, 03/03/2008, O País, p. 4
Dom Eugenio conta as razões de sua atuação silenciosa na ditadura militar.
Encapuzado, foi jogado nu no chão frio. Tateou as paredes e sentiu o revestimento de madeira com pequenos furos - o lugar era à prova de som. A luz sumiu, e a cela ficou subitamente gelada. Vieram os ruídos, cada vez mais altos. Depois, silêncio, frio e sede:
- Deixaram-me sedento - ele conta. - Só davam comida bem salgada. Alternavam luz, escuridão, ruídos e muito frio. Sonhava com uma folha de jornal entre o chão e o corpo.
Um dia, a porta abriu e jogaram um macacão para o sanitarista José Noronha, atual chefe da Secretaria Nacional de Atenção à Saúde, em Brasília. Depois de um banho, foi empurrado para uma cela com colchão. Nem teve tempo para o êxtase da visão da cama, acabou plantado diante de um oficial:
- Era o general [Sylvio] Frota. Perguntou se eu estava bem, respondi que não. Ele foi embora. Era véspera ou dia de Natal. Sei disso porque me prenderam no dia 18 de dezembro e nas salas em volta comemoravam o Natal. Entendi que estava preso há dez dias no quartel da Polícia do Exército, aquele da Rua Barão de Mesquita. Fui entregue à família, no dia seguinte.
"Frota, você tem a cara feia e o coração bobo"
O general Frota comandava o I Exército, no Rio. Pouco antes, recebera um telefonema do cardeal Eugenio Sales, que relata:
- Falei com o Frota. Ele telefonou de volta, zangado, dizendo que era um comunista. Eu disse: "Não é, conheço ele e a família." E ele: "É." Ficamos naquele "é", "não é", até que eu disse: "Agora o senhor faça o favor de soltá-lo." E ele: "Vou ver o que posso fazer." Aí, eu disse, lembro-me bem disso: "Vai soltar antes do Natal, viu Frota. Você tem a cara feia, e o coração bobo" - o cardeal ri. - Nunca me esqueci, desse termo: "A cara feia, o coração bobo."
Noronha supõe ter sido preso por causa de contatos com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), mais de cinco anos antes, quando presidira o Centro Acadêmico Carlos Chagas.
- Certeza só a de que Dom Eugenio foi essencial. Evitou que eu sofresse mais, tomasse choque elétrico, coisas assim. Tenho extrema gratidão a ele, que fez isso com muitos outros.
No Brasil daquele Natal de 1973, o governo Emilio Medici comemorava um crescimento econômico de 14% (inédito e que não voltaria a ocorrer nas três décadas seguintes), liquidara o terrorismo, a guerrilha na Amazônia e equipara a ditadura militar com uma máquina de extermínio de esquerdistas.
Unido na luta pela autonomia institucional, o clero se dividia na "teologia da libertação". O debate refletia uma sociedade renascente, que encontrara na Igreja abrigo singular e independente para vazar seu protesto em um tempo de matança e censura. Dois cardeais, com estilos distintos de atuação política, galvanizavam o episcopado: o anticomunista Eugenio Sales, no Rio, e o liberal Paulo Evaristo Arns, em São Paulo.
Filho de imigrantes alemães, Arns saíra de Forquilhinha (SC) aos 12 anos de idade para se ordenar em um claustro franciscano no Paraná. Clamando contra a tortura na capital paulista, cristalizava a resistência civil.
Sales, nascido em Acari (RN), sonhava com agronomia quando o pai desembargador o internou no seminário de Natal, aos 11 anos. Em silêncio, o cardeal do Rio cultivava relações com o poder militar e ajudava a salvar vidas - de brasileiros e de refugiados das ditaduras do Cone Sul, que abrigaria entre 1976 e 1982.
- Se eu anunciasse o que estava fazendo, não tinha chance. Muitos não concordavam, mas eu preferia dialogar e salvar. Agora, eu mantinha uma posição da Igreja, que era essa.
Chegou a ter dúvidas sobre essa postura. Numa noite procurou um conselheiro, o advogado católico Sobral Pinto:
- Eu era pressionado por outros, que não concordavam. Expliquei que minha posição era essa, porque o Papa Paulo VI me chamou, e o padre que era o número três no Vaticano completou, disse-me que continuasse naquele rumo. Disse expressamente "continue nesse rumo". Então contei ao Sobral e ele ele disse: "Se é o Papa quem diz isso em carne e osso, então ele tem razão."
No Rio, era criticado, dentro e fora da arquidiocese. Pelo autoritarismo e a maneira implacável ao lidar com quem defendia o marxismo como instrumento de formulação da doutrina social da Igreja.
O jeito taciturno e conservador na ditadura contrastava com a fama de "bispo do Nordeste", inovador nas ações pastorais com os pobres - criara comunidades eclesiais de base e sindicatos rurais, em pararelo às Ligas Camponesas de Pernambuco, quando passou pela arquidiocese de Natal, entre 1954 e 1965.
Quando aportou no Rio, em 1971, impôs a lei do silêncio na sua jurisdição. Proibiu dominicanos de rezar missa "pelas mães" dos presos políticos, simplesmente anunciaram aos jornais. E batalhou no Vaticano, onde chegou a acumular 11 cargos, para costurar a mordaça que seria imposta na década seguinte aos irmãos Boff - expoentes da "teologia da libertação" -, enquanto proibia outros teólogos de ensinar na rede católica.
Manteve um silencioso embate com a corrente católica tradicionalista, agrupada desde os anos 50 em torno do bispo Antonio de Castro Mayer, da diocese de Campos (RJ), e do conservador Gustavo Corção, articulista do GLOBO. Em gesto raro, fez ácida e pública condenação do escritor, por achar suas crônicas "desrespeitosas" em relação ao Papa.
"Fui duro, breve, e Medici teve humildade"
Aos olhos dos chefes do regime, era a principal autoridade da Igreja brasileira. Medici o recebeu no Palácio do Planalto, em 1970, com um cerimonial próprio para chefes de Estado. Tiveram uma conversa "duríssima", diz o cardeal:
- Fui duro e breve. Era uma dura provocativa, uma dura que mostrava sinceridade. Eu precisava dizer a ele que não podia ser [a matança], não podia continuar assim. Ele teve humildade. Até disse: "Eu te admiro, porque é tido assim como estúpido, forte nas coisas." E mostrou a dificuldade que tinha. Disse que as coisas demoravam para chegar até ele e, quando chegavam, nada mais podia fazer. Não justifico, mas entendi o problema.
Zeloso com a autonomia da Igreja, desconcertou o comandante de Salvador, general Abdon Sena, que lhe pediu missa pelo aniversário do instrumento mais simbólico da ditadura, o Ato Institucional Número 5.
- Vocês que estão satisfeitos com o AI-5 podem agradecer a Deus, mas não por meu intermédio - respondeu.
Queria visitar presos políticos e percebeu resistência.
- Sou bispo e se não puder visitar um prédio público na minha jurisdição, vou me recolher à prisão domiciliar - anunciou ao general responsável, e as portas dos presídios cariocas se abriram ao cardeal.
Sebastião Paixão, ex-dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB), atual presidente do PPS de Niterói, relata o peso disso para os presos políticos:
- Fui torturado durante 83 dias e depois mandado para o presídio da Rua Frei Caneca. Um dia, Dom Eugenio foi lá e pedi que arranjasse nossa transferência para Bangu, onde as famílias poderiam nos visitar. Dois dias depois, mudamos. Na prisão, eu fiz uma pirogravura do Cristo Redentor para ele, em agradecimento.
Quando a cúpula do PCB foi dizimada nos porões do regime, o general Ernesto Geisel governava. Entre as vítimas estava Luís Maranhão, ex-deputado do Rio Grande do Norte, amigo do cardeal Sales. Ele apelou a Geisel. Deixou-lhe um papel com o registro do pedido. Em vão.
COLABORARAM Ascânio Seleme e Luiz Paulo Horta