Título: O mito do Brasil pacífico
Autor: Jansen, Roberta
Fonte: O Globo, 08/03/2008, Ciência, p. 49

Historiadores questionam idéia de que, pelas mãos de D. João, país teve formação ordeira em oposição à da turbulenta América hispânica

Akern 0.3pt ¿ Esse é um mito nacionalista produzido por historiadores do século XIX que faz uma apologia a D. João, que reforça a idéia de que D. João permitiu transições pacíficas ¿ afirma o historiador Marco Antônio Pamplona, da PUC-RJ, um especialista em Américas. ¿ Combatemos esse mito de que este era um país pacífico desde o início, diferente dos vizinhos que viviam se digladiando; de um Brasil aristocrata que não faz parte desse mundo das republiquetas latino-americanas. Essa é uma visão conservadora da História.

Pamplona e Maria Elisa Mäder, também especialista em história das Américas da PUC-RJ, são os organizadores de ¿Revoluções de independências e nacionalismos nas Américas¿ (Ed. Paz e Terra), cujo segundo volume chega agora às livrarias. A visão de Maria Elisa é similar à do colega.

¿ Sempre se olha para a América Latina com uma série de preconceitos, de pré-concepções que às vezes atrapalham mais do que ajudam. Há uma certa tendência, e acho que a mídia contribui para isso, de ver uma América eternamente em ebulição, desordeira, anárquica, caudilhesca ¿ sustenta Maria Elisa. ¿ Acho que, na verdade, se conhece pouco da história da América hispânica e se embarca com facilidade nessas noções preconcebidas.

Alguns fatos históricos são inquestionáveis e têm origem em um ponto comum: a invasão napoleônica da Península Ibérica em 1807, que provocou mudanças radicais e definitivas nos domínios coloniais de Portugal e Espanha. Se D. João transferiu a Corte para o Brasil, mantendo o trono, o rei espanhol Fernando VII foi deposto. Seu reino passou para as mãos de José Bonaparte, irmão de Napoleão, o que impôs às colônias um período de grande experimentação política.

¿Enquanto o Brasil era governado pelo rei de Portugal, sua vizinhança foi um barril de pólvora. Em menos de duas décadas a América espanhola se transformou radicalmente, numa sucessão de independências conquistadas na ponta da espada¿, escreveu Maria Elisa em artigo sobre o tema para a ¿Revista de História da Biblioteca Nacional¿. Segundo a historiadora, na América hispânica ¿a desarrumação causada pela invasão napoleônica abriu caminho para que a elite crioula (os brancos nascidos na América espanhola) motivasse um crescente debate nas colônias sobre soberania, representação do povo na política, a idéia de nação e a necessidade de dar uma nova Constituição à monarquia¿.

A despeito dos avanços políticos alcançados, inclusive com a promulgação, em 1812, de uma Carta bastante progressista em muitos aspectos, guerras civis começaram a eclodir já em 1810. Em 1814, a situação se agravou ainda mais, com a derrota de Napoleão e a volta de Fernando VII ao trono. Entre as primeiras medidas tomadas pelo rei estavam a abolição da Constituição e a restauração do absolutismo. Duas figuras tornaram-se emblemáticas nas acirradas lutas latino-americanas no período: Simon Bolívar e José de San Martin.

¿ Num determinado momento, o Brasil tinha a única monarquia instaurada, rodeada de repúblicas ¿ lembra Maria Elisa. ¿ Essa historiografia clássica do século XIX, que tem a ver com a herança imperial, de alguma maneira precisou construir uma imagem do Brasil império em oposição à das repúblicas: era o império da ordem, da civilização (mesmo defendendo a escravidão) em contraste à América da desordem, que se fragmentou depois da independência, que não soube manter sua unidade perdida nas lutas caudilhescas.

Os historiadores lembram, no entanto, que os processos brasileiros não foram tão pacíficos quanto se costuma alardear.

¿ É claro que não foi mais pacífico ¿ sustenta Pamplona, citando as diversas revoltas, muitas delas bastante violentas, que marcaram a formação do país. ¿ Mas o que a historiografia decidiu registrar e o que deixou de fora é outra coisa. Não havia integridade territorial, as fronteiras eram tênues e só foram demarcadas ao longo do século XIX, mais de quatro décadas de muita luta contra poderes locais.

Para os especialistas, tentar usar o modelo clássico da historiografia para explicar os atuais conflitos entre Colômbia, Equador e Venezuela é forçar a barra, lançando mão de estereótipos e generalizações que, segundo eles, não existem. Mas os historiadores reconhecem que não se trata de uma tarefa fácil, ainda mais diante das trapalhadas de Alvaro Uribe na fronteira, de um Rafael Correa chamando o colega de ¿canalha psicopata¿ e de um Hugo Chávez sempre envolvido em polêmica.