Título: Novos ventos
Autor: Lima, Luís Corrêa
Fonte: O Globo, 10/03/2008, Opinião, p. 7
Novos ventos estão soprando na Igreja Católica. É bastante conhecida a tradicional oposição da hierarquia eclesiástica ao casamento gay, bem como às relações homoeróticas. No entanto, aconteceu um fato surpreendente: o novo presidente da Conferência dos Bispos da Alemanha, Robert Zollitsch, declarou-se a favor da união civil dos homossexuais. Para ele, trata-se de uma questão da própria realidade social: se há pessoas com esta orientação, o Estado deve adotar uma legislação correspondente. Todavia, Zollitsch considera um erro a idéia de ¿matrimônio homossexual¿, devido à sua própria concepção matrimônio, essencialmente hétero.
À primeira vista, esta aprovação da união civil soa como uma divergência radical em relação ao Papa. Afinal, a imagem de Bento XVI freqüentemente é associada a conservadorismo ou intransigência. Mas as coisas não são bem assim. De fato, o Papa defende com veemência o termo ¿matrimônio¿ reservado à união entre homem e mulher. Quanto à união civil homoafetiva, o Papa disse que o seu reconhecimento enfraquece e desestabiliza a família fundada no matrimônio. Por isso, reconhecê-la ¿parece perigoso e contraproducente¿.
Convém analisar os termos usados: ¿parece¿ não quer dizer necessariamente que seja; ¿perigoso¿ não significa abominável nem inadmissível. O fogo é perigoso. Pode produzir incêndio e morte. Mas, com o devido cuidado, pode ser usado na cozinha de uma residência. Portanto, os termos do Papa não são taxativos e nem encerram o debate.
Bem diferente foi o pronunciamento da Congregação para a Doutrina da Fé em 2003, assinado pelo então cardeal Ratzinger. A linguagem é bem dura: as uniões homossexuais são ¿nocivas¿ à sociedade, e deve haver oposição clara e incisiva ao seu reconhecimento legal, sobretudo dos políticos católicos. Isto era bem de acordo com o pensamento de João Paulo II, a quem a Congregação obedecia. Wojtyla considerava aquelas uniões uma grave violação da lei de Deus e uma manifestação da astuciosa ¿ideologia do mal¿.
Com isto se vê que há na Igreja uma diversidade de posições sobre o tema. E isto é compreensível. Afinal, a Igreja está alicerçada na milenar tradição judaico-cristã e, ao mesmo tempo, espalhada pelo mundo e vivendo na cultura moderna. No judaísmo antigo, acreditava-se que o homem e a mulher foram criados um para o outro, para se unirem e procriarem. O homoerotismo era considerado uma abominação. Israel deveria se distinguir das outras nações de várias maneiras, inclusive pela proibição do homoerotismo. A Igreja herdou esta visão antropológica com sua interdição. No século XIX, porém, surgiu o conceito de ¿homossexualidade¿, que permite pensar esta realidade de outra maneira. A atração pelo mesmo sexo pode ser entendida como um dado da Natureza. No entanto, até o final do século XX a homossexualidade era considerada pela medicina uma doença, que muitos acreditavam ter cura.
Hoje há uma nova compreensão das coisas: a Humanidade não é totalmente heterossexual, e a sociedade deve aprender a conviver e a lidar com as diferenças. A Igreja, de certo modo, acompanha a sociedade. João Paulo II tinha uma posição tradicional de rejeição. Bento XVI, não mais sob as ordens de seu antecessor, adota uma oposição moderada. Até porque o discurso papal tem uma repercussão mundial, em lugares e contextos muito diferentes. Por isso, ele tende a ser cauteloso na mudança. Já o bispo alemão Zollitsch, diante da realidade de seu país, não vê as uniões homoafetivas como uma ameaça à família e aprova o seu reconhecimento civil. Assim se dão as mudanças na Igreja.
No Brasil, desde 1995 há um projeto de lei de união civil, da então deputada Marta Suplicy. Ele prevê que os termos ¿matrimônio¿ e ¿casamento¿ fiquem reservados às uniões hétero, em razão de suas implicações ideológicas e religiosas. Para uniões gays, usam-se ¿parceria¿ e ¿união civil¿. São propostas bastante de acordo com o bispo do país do Papa.