Título: Uma trágica naturalidade
Autor: Amora, Dimmi; Escóssia, Fernanda da
Fonte: O Globo, 09/03/2008, O País, p. 3

Vítimas do trânsito alertam: beber pouco ainda é beber.

O custo da naturalidade com que o brasileiro encara a mistura entre bebida e direção, ela sentiu na pele. Enxerga, com clareza, o que os números camuflam ¿ 78% dos entrevistados pela pesquisa Nova S/B-Ibope afirmam que não bebem quando dirigem, enquanto apenas 19% admitem beber. Rita de Cássia Lucas Miguel, de 38 anos, poderia estar no primeiro grupo. Antes do acidente que a deixou 45 dias em coma, beber ¿um ou dois chopes¿ era como não beber. Hoje, sabe que as latas de cerveja foram suficientes para fazê-la perder o controle de sua moto.

Naquele 6 de maio, ela repetiu a rotina de beber ¿socialmente¿, na saída do trabalho, no Humaitá, Zona Sul do Rio. Levava um amigo de carona, para Realengo, na Zona Oeste, quando decidiu comprar latinhas e consumir enquanto pilotava a moto. Passou por uma blitz e foi liberada, depois de apresentar os documentos. Pouco adiante, sem controle, a moto explodiu. Em seis meses, fez 22 cirurgias para reconstruir a pele do abdome, das pernas e do braço esquerdo.

¿ Eu não via diferença. Para mim, as pequenas doses de álcool não mexiam com a minha percepção. Hoje, mais de dez anos depois, sei que sem as cervejas não teria sofrido o acidente ¿ diz Rita.

Elizabete Florinda da Silva, de 56 anos, lembra com detalhes de uma noite de outubro, há cinco anos, quando seu filho Saulo, com 19 anos, prometera chegar cedo em casa, em Jacarepaguá, depois de levar a namorada em casa. Ao parar em um posto de gasolina, na Linha Amarela, foi atingido por um carro dirigido por um motorista de 60 anos, embriagado. Ficou treze dias em coma e não resistiu.

¿ Meu filho era considerado careta, até na família. Mas não adiantou. O álcool atravessou o caminho dele ¿ conta a mãe.

Ao recuperar o registro do acidente, ela descobriu que o laudo do motorista infrator identificou estado de embriaguez. Ele saíra para comemorar o aniversário de 60 anos com um sobrinho. Nunca foi preso.

Diante do sofrimento, Elizabete se tornou uma espécie de fiscal entre os familiares. Mas lamenta que o hábito de beber e dirigir ainda ronde até mesmo a sua família.

¿ Apesar de ter acontecido o acidente, de vez em quando eu saio com o meu marido e ele bebe umas cervejinhas antes de dirigir. Meus sobrinhos também fazem isso ¿ afirma.

A impunidade, na opinião de Elizabete, contribui para o descaso com as conseqüências desastrosas da mistura entre álcool e direção. Para ela, não existiria castigo maior do que acompanhar a rotina de resgate de vítimas de acidentes. Enquanto nada muda na lei, Elizabete faz o que pode:

¿ No aniversário de 25 anos da minha filha, suspendi a cerveja quando vi que estavam todos alegres demais. Virei a chata de plantão.

No Rio, dados do Corpo de Bombeiros mostram que 30% dos motoristas envolvidos em acidentes têm hálito etílico, ou seja: consumiram álcool antes de dirigir. (Maiá Menezes)

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