Título: A culpa é dos outros
Autor: Amora, Dimmi; Escóssia, Fernanda da
Fonte: O Globo, 09/03/2008, O País, p. 3

Pesquisa revela que brasileiros se acham muito melhores do que o Brasil.

Pense num cidadão que respeita os idosos, os direitos humanos e o meio ambiente, é tolerante com a diversidade de raça e sexo, respeita as regras do trânsito e do convívio social. Agora pense num país que pratica a tortura, é racista, homofóbico e desmatador, desrespeita idosos, ignora filas de banco e leis do trânsito. Esse abismo entre o brasileiro que se diz progressista, mas vê um país conservador, é uma das conclusões da "Pesquisa sobre Valores e Atitudes da População Brasileira", realizada pela agência Nova S/B em parceria com o Ibope e publicada com exclusividade pelo GLOBO.

Mas o brasileiro que se diz progressista não o é tanto assim: 26% dos entrevistados admitem a tortura como método de interrogatório. A pergunta citava "Tropa de elite" e lembrava que os policiais do filme usam práticas violentas, consideradas tortura. Para 68% dos entrevistados, a violência contra suspeitos é inadmissível.

Tortura é herança da escravidão

Confrontados com uma pergunta teórica sobre a valorização dos direitos humanos, os entrevistados tiveram que dar a si mesmos notas de 1 a 10, sendo 1 oposição total e 10 adesão total à valorização dos direitos humanos. Entre os 26% que admitem a tortura, 51% se deram notas 9 e 10; 32% se deram notas de 6 a 8. A pesquisa calculou a incongruência nas respostas, ou seja, a diferença entre o valor teórico e o comportamento diante da situação prática: 22%.

Dos entrevistados, 60% se deram notas 9 e 10 no respeito aos direitos humanos, e 27% se deram notas de 6 a 8. Mas a nota dada aos brasileiros desabou: só 17% da população mereceriam 9 e 10, enquanto 41% teriam notas ruins, de 1 a 5.

Nilo Batista, professor de direito da Uerj, lembra que no Brasil a tortura é herança da escravidão e que, diferentemente dos países europeus, onde a coerção ao trabalho se dava economicamente, no Brasil era na base do castigo físico. Nilo lembra que a tendência cada vez maior de aceitação, principalmente no Rio, de um estado policial em oposição ao estado de direito faz com que cada vez mais gente aceite a prática de tortura:

- Não me surpreenderia se, na Alemanha de 1938, pesquisa como esta desse resultados semelhantes.

Ao falar de homossexualidade, o maior preconceito: 33% dos entrevistados admitiram que se afastariam de um amigo se descobrissem sua homossexualidade; 65% disseram que manteriam a amizade. Perguntados se respeitam a homossexualidade, 42% deram a si próprios notas 9 e 10, e 27% se deram notas de 6 a 8. Mas 54% dos brasileiros mereceram notas de 1 a 5; 33%, de 6 a 8, e só 10% teriam 9 e 10.

O Ibope ouviu 1.400 brasileiros sobre sete temas, de meio ambiente a racismo. Em todos, a mesma conclusão: o brasileiro se acha mais ético e progressista que o país em que vive. A atitude de projetar no outro uma atitude questionável, isentando a si próprio do erro, é uma tendência verificada mundialmente em pesquisas, dizem os analistas responsáveis pelo estudo. Esse outro genérico e coletivo é, na verdade, um pouco de cada um.

- Chamamos a isso de "third person effect" (efeito da terceira pessoa), ou seja, de apontar o erro no outro, no conjunto da população - diz Silvia Cervellini, do Ibope.

Outro ponto destacado é o fato de que, em meio à discussão do politicamente correto, muitos entrevistados camuflam ou não assumem o próprio preconceito.

- Uma resposta acima de 15% é forte, pois ela traz embutida uma idéia não-declarada. Acima de 20%, então, é muito forte - diz ela.

Para o psiquiatra doutorado pela USP Eduardo Ferreira Santos, especialista em comportamento, a pesquisa revela a incongruência entre o que dizem e o que fazem. E, quando descobertos na incongruência, os brasileiros agem como resumiu o filósofo existencialista francês Jean Paul Sartre: "O inferno são os outros".

O antropólogo Roberto da Matta, colunista do GLOBO, lembra que a discrepância entre o que as pessoas consideram que fazem e o que é feito de fato é um elemento universal.

- Mas tudo indica que, no Brasil, como nas sociedades mais hierarquizadas, aristocráticas, a discrepância é maior - afirma o antropólogo, um estudioso da dualidade entre o espaço privado, onde tudo é permitido, e o público, dominado pela regra.

Para ele, o mais preocupante é que a incongruência é valorizada:

- Quem se considera esperto e malandro é quem burla. A incongruência é vista como valor, é um sinal de superioridade, prestígio.

Para o filósofo Renato Janine Ribeiro, professor de ética e filosofia política na USP, a pesquisa indica que a sociedade brasileira, "mentirosa e hipócrita", está sofrendo de um mal: a proibição da fala, resultante da cobrança de se enquadrar no politicamente correto. Segundo Janine, o preconceito escondido se torna mais forte que o exposto. Mas, se admitido e revelado, pode ser vencido pelo diálogo.

- É o pior de dois mundos: não gosta (de homossexuais, de negros etc.) e não pode falar. Sem admitir a verdade, não há como combater o preconceito. Não é possível só condenar o preconceito, mas sim compreendê-lo e dialogar. Um pai pode não gostar de ter um filho homossexual. Deve falar, mesmo que sejam bobagens. Mas terá que ouvir o filho. O diálogo é necessário. Se o pai descobrir que o filho é feliz assim, vai aceitar. Mas não é um processo tranqüilo.

Janine acha o Brasil "profundamente mentiroso", porque adota a hipocrisia, mas considerou que os brasileiros foram sinceros nas respostas:

- Quando percebi que disseram o que pensam, passei a supor que há saída. Com mentirosos não se muda um país. O que não pode haver é proibição da fala, resultante do politicamente correto. Nossa sociedade transformou o espaço público em espaço da mentira. A saída é o diálogo. Não adianta substituir a lista de dez mandamentos por outra lista de dez mandamentos. As pessoas têm que parar de terceirizar a vida ética. Não é porque o rabino ou o pai mandou. As pessoas escolhem sua ética.