Título: Um momento histórico, criativo e unificador
Autor: Anderson, Carter; Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 09/03/2008, O País, p. 14

Historiador da UFRJ é um dos organizadores de seminário sobre o ano que, diz, é um marco no pensamento transformador.

Em sua sala no Instituto de Filosofia e Ciência Sociais (IFCS) da UFRJ, o professor de História Carlos Fico ¿ que coordena o grupo de estudos sobre a ditadura militar ¿ tem-se dedicado à organização de um seminário que, de 6 a 9 de maio, vai analisar 68 com especialistas brasileiros, argentinos e americanos. O interesse pelo tema, diz ele, mostra que há desdobramentos até hoje, apesar dos parcos resultados obtidos pelos revoltosos. No Brasil, houve o AI-5; nos EUA, a Guerra do Vietnã continuou; e, na França, De Gaulle ganhou a disputa. Para ele, deve-se analisar 68 como um momento em que valores unificadores irrompem com vigor na sociedade. Algo raro.

¿ Determinados valores podem irromper na sociedade com força e vigor, de um momento para outro. Nunca se deve achar que as coisas estão terminadas.

Carter Anderson e Chico Otavio

O senhor acha que 68 é um ano que esgotou seu ciclo ou ainda há desdobramentos?

CARLOS FICO: Tem desdobramentos, claro, por conta da memória que se constituiu em torno desse ano, no Brasil e no exterior. Houve uma série de episódios marcantes, aqui e lá fora. Embora o ciclo de rebeldia tenha de alguma maneira se esgotado, há uma constituição de uma memória sobre 68 um tanto mítica, heróica. É essa memória que surge agora, celebrando 1968 como marco da rebeldia, do pensamento revolucionário e transformador. O simples fato de um ano mobilizar tão fortemente as pessoas, inclusive com disputas quanto a essa memória ¿ 68 foi um marco da rebeldia, da revolução, ou um momento de ilusão? ¿, toda essa discussão é indicadora de que é um momento da História ainda presente para as pessoas.

O senhor concorda com a análise de que a radicalização dos que se opunham ao regime militar levou à radicalização do regime?

FICO: Não. A memória da esquerda, ou de parte dela, no caso do Brasil, afirma que a opção pela luta armada decorreu do endurecimento do regime. E a memória militar assegura que, ao contrário, o regime só buscou mecanismos mais rigorosos de repressão porque houve a opção da esquerda pela luta armada. Nenhuma dessas visões é correta. O que aconteceu foi que esses setores tinham projetos autônomos de constituição das suas utopias. Desde 64, boa parcela dos militares tinha o anseio de fazer uma operação de limpeza radical, na suposição de que, eliminando o que chamavam de subversivos e o que entendiam por corrupção, o Brasil se transformaria numa grande potência. O AI-5 é a vitória da linha dura e essa demanda é anterior ao conhecimento pelos militares da opção mais radical da esquerda. Do mesmo modo, parcela da esquerda queria optar pela luta armada, pela tomada do poder para a instalação de um regime socialista, mesmo antes do golpe. Esses dois projetos têm grande relação, mas forte grau de autonomia.

Ambos os projetos teriam viés autoritário?

FICO: Ambos não tinham uma perspectiva democrática. Essa é uma discussão muito presente na universidade, entre os historiadores, sobre o quanto aqueles setores naquele momento não estavam com o mesmo apreço pela democracia, como o que temos hoje. Mas a conjuntura era completamente diferente.

O senhor falou em utopias...

FICO: Sessenta e oito, no Brasil e na América Latina, é um momento de luta contra a ditadura militar. Na Europa, é um momento de uma certa utopia socialista, a união estudante-trabalhador, na França. Nos Estados Unidos, já há uma outra configuração, que é a problemática dos direitos civis e a Guerra do Vietnã. Mas no Brasil costumamos dizer que os militares tinham uma utopia militar, como já disse, uma utopia autoritária, e resultou no que todo mundo sabe. No caso da esquerda, que optou pela chamada guerrilha urbana e pela guerrilha rural, essa muito incipiente, havia uma perspetiva bastante ingênua, que era se contrapor ao Exército supondo que o povo acorreria para suas idéias. Nada disso aconteceu, como é óbvio. Não deixa de ser surpreendente que essa perspectiva tenha prevalecido. Mas é claro que era uma conjuntura posterior à vitória da revolução em Cuba, aquele romantismo que inspirou aqueles jovens.

Os fatos que ocorreram na França e nos EUA influenciaram o que houve aqui?

FICO: Muita gente pergunta isso e é um pouco difícil de responder. São fenômenos um poucos diversos. Talvez tenha sido um momento de maturação de uma certa perspectiva da esquerda. Agora veja: no caso do Brasil, terminamos no AI-5. No caso dos Estados Unidos, aquele país continua a ser uma potência bélica, apesar do movimento pacifista contra o Vietnã. E no caso da Europa, sobretudo no caso da França, toda aquela movimentação acabou em nada. Acabou na vitória de De Gaulle.

Por que 68 marca tanto se o resultado foi frustrante?

FICO: Marca muito porque houve outros aspectos. Foram momentos de uma energia criativa muito grande, do ponto de vista das expectativas de transformação social. Você imagina o impacto que tem aqueles jovens todos na rua, seja aqui no Rio de Janeiro, seja em Paris, seja em Washington, em Nova York... a mobilização da esperança, a mobilização das energias utópicas, que todos temos, de querer viver num mundo melhor. Foi uma coisa que alcançou um auge, um grande momento. Mas o historiador tem essa preocupação, que é lidar de maneira cuidadosa com a memória. Não podemos embarcar numa onde de celebração, não estou aqui para comemorar efeméride. Nós temos que mostrar, da melhor maneira possível o que aconteceu em sua complexidade mais ampla

Como este período deve ser analisado?

FICO: O fato de ter sido uma ação vitoriosa ou fracassada não é exatamente o ponto mais importante. Julgar se eles estavam certos ou errados, não é essa a questão. Para mim, o que fica de mais significativo é o poder que esses momentos históricos unificadores têm de revigorar, de energizar nossas convicções de vida melhor, de transformação. Acho que esse é o grande lance, você perceber que determinados valores podem irromper na sociedade com força e vigor, de um momento para outro. Nunca se deve achar que as coisas estão terminadas. A História não termina, ao contrário do que disse Francis Fukuyama (teórico político que escreveu ¿O fim da História e o último homem¿', publicado em 1992, após a queda do Muro de Berlim). Não termina, e 68 nos fala muito disso.

Ano passado, o movimento estudantil foi às ruas no episódio Renan Calheiros, mas os atos duraram pouco...

FICO: Muita gente tem a impressão de que os estudantes estão apáticos. Acho um equívoco total. Não acho que os estudante estejam apáticos. É um outro contexto. Durante a ditadura militar, qualquer pessoa de bom senso, quem era contra a ditadura, estivesse numa posição liberal ou de extrema-esquerda, se congregava num movimento contra a ditadura. Isso unifica as pessoas. Quando a gente volta para a democracia as coisas mudam muito: aquelas pessoas que estavam contra esse inimigo comum passam a ser antagônicas entre si. E o mundo mudou muito. Aquela utopia revolucionária, que foi um dos pilares da política até muito recentemente, hoje não existe concretamente para um bom número de pessoas. Era uma verdadeira ética, não era só uma opção política. Uma ética transformadora, revolucionária. Essa perspectiva acabou, mas não acabou para os estudantes, acabou para todo mundo. Então a gente poderia falar da suposta apatia ¿ e por isso discordo de ser algo dos estudantes ¿ também da minha, da sua, de todo mundo, de todos os trabalhadores. Não sabemos como enfrentar o sistema de produção de mercadorias, seja o capitalismo, seja o que for. Isso é uma coisa sobre a qual ainda não existe uma reflexão significativa. Não é um mal que caracteriza os estudantes. Sempre que há um inimigo comum muito claramente estabelecido há uma unificação.

`Vitória do feminismo¿

Em relação aos EUA, 68 ficou marcado pela luta pelos direitos civis. Hoje, um negro (Barack Obama) e uma mulher (Hillary Clinton) disputam com chances reais a presidência dos EUA. É o coroamento daquela luta?

FICO: Não sei se é um coroamento. Não gosto de fazer essas comparações, porque parece que a História tem um sentido predeterminado. Os processos são extremamentes complexos. Agora, é claro que a possibilidade uma mulher estar concorrendo e ser uma potencial candidato à presidência americana ¿ assim como mulheres já ocupam cargos importantes na Alemanha, no Chile ¿ tem a ver com o movimento feminista. No caso do Obama, acho mais complicado analisar, porque ele tem uma conotação de fenômeno eleitoral que guarda relação com uma série de aspectos. Mas a presença de mulheres nesses postos certamente tem a ver com o movimento histórico do feminismo.

Os EUA viviam o atoleiro da Guerra do Vietnã. Hoje, têm o problema do Iraque...

FICO: No caso do Vietnã, foi um processo que teve grandes conseqüências para o Brasil. O governo Castello Branco queria participar da Guerra do Vietnã, mas ele percebeu que não obteria apoio do Congresso.

O governo brasileiro foi pressionado pelos EUA?

FICO: Muito pressionado.

Que ajuda queriam?

FICO: Tropas, mas foram enviados apenas alguns observadores militares, além de jornalistas, para fazer matérias favoráveis. E também a chamada ajuda humanitária. O governo Castello Branco vinha nessa pretensão de auxiliar militarmente. Ele disse, em documentos sigilosos e só hoje conhecidos, que teria gostado muito de ter mandado tropas brasileiras para lá, mas que não conseguiria apoio do Congresso Nacional.