Título: Máquina mortífera
Autor: Werneck, Antônio; Ramalho, Sérgio
Fonte: O Globo, 09/03/2008, Rio, p. 18

Polícia Militar do Rio mata 327% mais que a de São Paulo, que tem o dobro do efetivo.

Uma análise dos autos de resistência - mortes em supostos confrontos com policiais - registrados de janeiro a setembro de 2007 no Rio revela que a PM fluminense matou 1.245 pessoas, 327,8% mais do que a paulista, responsável por 291 casos no mesmo período. A situação não melhora quando se compara a taxa de mortos por grupo de mil policiais. No Rio, onde a tropa tem 38,5 mil homens, o índice foi de 32,3 casos. Isso é quase dez vezes mais que a taxa registrada em São Paulo - 3,5 -, onde a corporação conta com 84,3 mil integrantes.

Isolada no topo do ranking nacional dos autos de resistência, a PM fluminense reflete, segundo especialistas consultados pelo GLOBO, a insistência numa política de confronto. O que também pode explicar o elevado número de registros em ações de policiais civis, comparando-se com os dados da corporação paulista. Nos primeiros nove meses do ano passado, a Polícia Civil do Rio, com um quadro de 10,3 mil homens, contabilizou 42 mortes em supostos confrontos, o que dá uma taxa de 4,1 casos para cada grupo de mil agentes. Em São Paulo, onde a corporação conta com 39,3 mil policiais, foram registrados 19 casos (uma taxa de 0,5).

Especialista critica política de confronto

É importante ressaltar que a Polícia Militar e a Civil têm atribuições distintas, cabendo à primeira o patrulhamento ostensivo e à segunda o trabalho judiciário. A comparação entre as taxas das polícias fluminenses mostra que a Militar matou oito vezes mais que a Civil. Juntas, as duas corporações foram responsáveis pelas mortes de 1.287 pessoas de janeiro a setembro do ano passado. Uma média de nove casos a cada dois dias.

- Essa insistência no confronto tem se revelado um desastre. Só na área do Complexo do Alemão e da Penha, já morreram, desde maio passado, mais de 70 pessoas, entre elas crianças. Para quem não mora nessas comunidades, parece que a polícia não está se curvando ao tráfico. No entanto, nossas taxas de criminalidade violenta continuam muito altas - diz a socióloga Julita Lemgruber.

Diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade Candido Mendes e ex-ouvidora da Polícia, Julita compara os números do Rio com os de São Paulo, "onde quase todos os tipos de crimes estão em queda, incluindo a violência policial".

- Em 2006, foram 39,4 homicídios por cem mil habitantes no Rio e 15,1 em São Paulo. A comparação das taxas mostra que polícia violenta não resolve - conclui.

O aumento no número de mortes em supostos confrontos no Rio fica ainda mais evidente na comparação dos registros de janeiro a setembro de 2007 com os do mesmo período do ano anterior, quando foram contabilizados 807 casos - um crescimento de 59,4%.

Para o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), os autos de resistência mascaram a prática da execução sumária:

- O auto de resistência é um instrumento que legitima em muitos casos a execução de inocentes. É inadmissível a concepção de que a ação letal da polícia represente segurança para a comunidade - argumenta.

Marcelo Freixo acrescenta que o grande número de mortes em supostos confrontos no Rio de Janeiro também expõe a fragilidade dos órgãos de controle interno e externo das polícias:

- É necessário que tanto as corregedorias das polícias Civil e Militar, quanto o Ministério Público e a Corregedoria Geral Unificada (CGU) implantem mecanismos para intensificar a apuração dos autos de resistência. O rigor nessas investigações é a única forma de diminuir o número de mortes - diz o deputado.

A adoção de uma postura mais rigorosa nas investigações das mortes também é defendida pela auxiliar administrativa Márcia de Oliveira Jacinto, de 46 anos. Moradora de uma comunidade carente no Lins de Vasconcelos, subúrbio do Rio, ela teve um filho morto por policiais do 3 º BPM (Méier), que registraram o caso como auto de resistência.

Estudante de informática, Hanry Gomes Siqueira, de 16 anos, foi morto com um tiro no coração, após ser levado a uma localidade no alto do morro, em 21 de novembro de 2002. Apesar da morte instantânea, o corpo do adolescente foi levado ao Hospital Salgado Filho, no Méier. Márcia, então, iniciou uma investigação com o auxílio de moradores que ficaram revoltados com o crime. Hanry não tinha qualquer relação com o tráfico.

Sete meses depois do crime, Márcia conseguiu reunir provas de que o filho não havia reagido à ação policial. Onze PMs foram identificados e, em 2006, quatro anos depois da morte, um processo foi instaurado na 3ª Vara Criminal do Tribunal do Juri. Apenas dois policiais, um soldado e um cabo, respondem à ação, mas continuam trabalhando.

- Hoje, retiro forças para viver da esperança de conseguir justiça - desabafa Márcia.

Integrante da rede Movimentos Contra a Violência, ela ressalta a dificuldade encontrada por parentes de vítimas inocentes da ação policial para conseguir identificar e punir os envolvidos nos crimes:

- Não bastasse a dor pela perda de um filho, somos confrontados com o preconceito. A verdade é que quem mora em favela é tratado como bandido. Os policiais retiram os corpos do local, impedindo a perícia, as investigações oficiais não andam e temos que conviver com a injustiça - conclui.

A luta de Márcia deu repercussão internacional à morte de Hanry. O caso do adolescente é citado em relatórios da Anistia Internacional e da Organização dos Estados Americanos (OEA). O GLOBO tentou ouvir o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, sobre a diferença no número de autos de resistência registrados pela polícia fluminense e pela paulista. Beltrame vai se pronunciar após a publicação da reportagem.