Título: Defesa da vida
Autor: Buarque, Cristovam
Fonte: O Globo, 15/03/2008, Opinião, p. 7

Nunca a humanidade esteve diante de opções éticas tão difíceis relativas ao uso da ciência e da tecnologia. É recente o poder da ciência de destruir a civilização e o planeta, com a bomba atômica, o aquecimento global e a manipulação da vida com diversas formas de biotecnologia. Hoje é possível não só prolongar a vida, mesmo depois da morte cerebral; mas também impedir o nascimento com métodos pré e pós-concepção; fertilizar in vitro e manter congelada uma população ilimitada de embriões; beneficiar os ricos com tratamentos que lhes permitam viver mais e melhor. Em breve, também será possível induzir mutações genéticas, beneficiando a classe social que paga por esse serviço e quebrando a semelhança da espécie.

Por isso, as opções devem basear-se em valores éticos e crenças humanistas. Os debates devem ser livres, para que as decisões considerem as crenças individuais e o interesse comum. Toda opinião deve ser ouvida, e ninguém deve ficar omisso. Este é o caso da decisão sobre o uso de embriões congelados nas pesquisas com células-tronco. Há razões morais e religiosas contrárias, mas pelo menos cinco que justificam as pesquisas.

A primeira razão é de ordem moral. Quem defende a vida deve defender o direito ao nascimento e à plena manutenção da vida e da saúde que ciência e tecnologia podem proporcionar. Contanto que a vida ou saúde de um não seja obtida sacrificando a de outro. A decisão de autorizar as pesquisas com embriões humanos passa pela escolha entre o nascimento de uma nova vida e a perda daquela que estaria em formação nos embriões. Saber em que momento surge a vida é questão científica e religiosa, mas saber quando a vida acaba é somente científico. E os cientistas afirmam que, depois que o embrião permanece congelado por três anos, é impossível que dali surja uma vida; se havia vida no momento da concepção, agora existe um ente morto. Não há, portanto, razão moral para considerar seu uso um atentado contra a vida. Não é um ato similar ao aborto ou à eutanásia. Se houve erro moral, ele teria ocorrido com a fertilização in vitro e o congelamento do embrião por tanto tempo.

A segunda razão é humanista. O direito à vida não pode ser visto somente como o direito de nascer. Precisamos considerar o direito de nascer e de continuar vivo. E muitas pessoas poderão viver, se essas pesquisas forem adiante. Não defende plenamente a vida quem não defende o direito à sobrevivência e à qualidade de vida de todos. Não há como falar em direito à vida sem considerar o direito de ficar vivo, de não morrer antes do tempo, por falta do avanço nas pesquisas científicas.

A terceira é política. O Brasil é um país laico. Os brasileiros têm diferentes religiões, e todas devem ser respeitadas. Em alguns países, a religião confunde-se com o Estado; neles, crime e pecado são a mesma coisa, mas esse não é o caso do Brasil. Aqui não podemos considerar crime o que é pecado para alguns. Os adeptos de cada religião têm, inclusive, o direito de não aceitar o desenvolvimento da medicina; podem recusar transplantes de órgãos ou transfusão de sangue. Mas por razões políticas, não podemos imaginar que uma fé se imponha a toda a população.

A quarta razão é social. Independentemente das leis brasileiras, essas pesquisas serão feitas em outros países. Se não autorizarmos as pesquisas, os brasileiros ricos irão aos Estados Unidos e à Europa; depois, à Argentina e ao Paraguai, ou a outros países que desenvolverão suas pesquisas. Socialmente, não podemos tolerar que uns se beneficiem de pesquisas porque têm dinheiro e outros não.

Do ponto de vista político, moral, social e humanista, há como justificar as pesquisas com células-tronco a partir de embriões. Mas além deles, há mais um a ser considerado: o ponto de vista patriótico. O Brasil não pode abrir mão do domínio científico em uma área tão fundamental da medicina. Se proibirmos o uso dos embriões nas pesquisas, daremos um passo atrás em relação às nações que poderão realizá-las.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).