Título: A mensagem de Bob Marley
Autor: Gil, Gilberto
Fonte: O Globo, 18/03/2008, Opinião, p. 7

A Jamaica comemorou no último dia 6 de fevereiro os 63 anos do nascimento de Robert Nesta Marley, o cidadão mais ilustre desse país caribenho, que se tornou um dos mais influentes do planeta na música popular globalizada. Também festeja em 2008 os 40 anos do reggae - conforme a versão mais aceita, a partir de gravação do grupo Toots and the Maytals, em 1968, com "Do the Reggay".

Dos anos 70 para cá, o reggae se tornou muito mais do que um estilo musical jamaicano internacionalmente conhecido. Ele foi veículo de uma verdadeira filosofia de vida, baseada na harmonia, na paz e na tolerância. Em minha trajetória artística e, agora, à frente do Ministério da Cultura, tenho buscado traduzir em ações o que considero um grande legado político de Marley para o mundo e o Brasil. Um legado político que não se traduz facilmente nos códigos da própria política.

A mensagem do reggae é de autonomia e autodeterminação. Suas músicas sugerem a busca de uma cidadania política e estética plena. Sua leitura de nossas sociedades me parece ser a de um processo de libertação mais profundo que o permitido hoje pelas esferas econômica e política. Marley canta e pratica os direitos culturais emergentes de multidão de seres humanos e, em alguma medida, demanda a ousadia de um projeto de sociedade feito de ascensão social, igualdade e direitos sociais ampliados e renovados.

Nesse sentido, sua música é uma declaração não oficial de uma nova geração de direitos humanos, culturais e ambientais. Ele cantou não só pelos jamaicanos, cantou pelos negros espalhados pelas Américas pela diáspora forçada pela escravidão, cantou pelos pobres de todo o mundo. E sua música atingiu a todos, sem discriminação social ou racial. Marley revelou como a cultura de origem africana não tem vocação para o gueto, ou para a segregação, mas é uma força includente, capaz de espelhar um sentimento de identificação e agregação.

Assim temos pensado e promovido a cultura no Brasil: como um direito fundamental dos brasileiros, que deve ser assegurado a partir da afirmação radical de nossa diversidade cultural como patrimônio maior da sociedade brasileira. A justiça demandada por Marley é um ideal não realizado no Brasil e no mundo. Temos uma grande missão no necessário reconhecimento de todos os saberes e conhecimentos, de todas as culturas e línguas que foram excluídas pelo saber oficial ou ignoradas pelas escolhas da indústria cultural.

Conheci a música do Bob Marley nos anos 70, quando voltei ao Brasil, enquanto a ditadura se esfacelava, e fiz a versão em português de "Woman No Cry". Tenho certeza: não foi o primeiro, nem o único caso em que a música jamaicana inspirou os mais altos ideais políticos.

Como já definiu o antropólogo Hermano Vianna, a vibe que emana do reggae nos revela que os países em desenvolvimento do Sul podem superar a submissão intelectual e cultural em relação às nações ricas do Norte. Há um trágico componente cultural na cópia mecânica de modelos de desenvolvimento de outras realidades. Nesse sentido, a cultura tem um papel estratégico, não apenas em sua dimensão setorial, mas em sua dimensão transversal, que diz respeito à ampla cultura política, econômica e social do Brasil, à cultura do desenvolvimento brasileiro. O país que queremos deve se comprometer não apenas com a garantia dos direitos culturais plenos, mas também com uma profunda mudança cultural na forma de se governar e ser governado.

É esse conjunto de questões que caracteriza a obra de Bob Marley. Que essa obra possa se manter viva não só na música que a eterniza, mas em nossas inspirações e atitudes por uma nova postura política e uma nova sensibilidade planetária.