Título: Mutação comunista
Autor: Jansen, Roberta
Fonte: O Globo, 22/03/2008, Ciência, p. 30

Nacionalismo em casa e reorientação na antiga URSS mudaram partido no Brasil

Oclima era de nacionalismo exacerbado no Brasil de 1958. Os ecos do tiro auto-infligido por Getúlio Vargas quatro anos antes ainda ecoavam com força. E o governo de Juscelino Kubitschek, com seu Plano de Desenvolvimento Nacional, apostava suas fichas na integração do país com a construção de Brasília. Foi nessa conjuntura que o comunismo precisou mudar no país. O processo de revisão originado na União Soviética foi adaptado por aqui e resultou na chamada Declaração de Março. A ortodoxia tradicional precisou ceder espaço a uma política de alianças.

O sinal verde para mudanças fora dado por Moscou, em 1956, durante o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, quando Nikita Krushchov denunciou a violência, os expurgos e as limitações à liberdade impostas pelo regime de seu predecessor, Josef Stalin. A mudança soviética provocou uma discussão nos PCs do mundo todo, que acabou repercutindo na linha política adotada por muitos deles.

¿ As resoluções do XX Congresso do PCUS criaram um clima favorável à mudança teórico-política de muitos partidos comunistas, entre os quais o brasileiro ¿ acredita Carlos Nelson Coutinho, diretor da editora da UFRJ, ex-membro do PCB, hoje no PSOL. ¿ E não apenas porque foram denunciados os crimes de Stalin, mas também porque nele se afirmava que as guerras não eram mais inevitáveis, com a conseqüente defesa da coexistência pacífica entre os países socialistas e capitalistas; e também que isso abria a possibilidade de uma transição pacífica para o socialismo nos países capitalistas. Eram duas afirmações que iam de encontro à visão até então predominante no movimento comunista.

Por aqui, a proposta de mudança ganhou contornos oficiais na Declaração de Março, publicada no dia 28, em que o Partido Comunista do Brasil (que depois mudou o nome para Partido Comunista Brasileiro) passou a defender um caminho pacífico para a revolução, com o apoio do então secretário-geral, Luiz Carlos Prestes. A declaração propunha a formação de uma frente única reunindo as forças interessadas na luta contra ¿a política de submissão ao imperialismo norte-americano¿, que ia desde os agricultores e operários até setores latifundiários, passando pela pequena burguesia urbana.

¿ A aliança passou a ser com setores nacionais. A grande mudança da Declaração de Março foi ter introduzido no centro da revolução social brasileira a questão nacional. Antes, o que predominava era a questão social ¿ sustenta o sociólogo Luiz Jorge Werneck Vianna, do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj), também ex-membro do partido. ¿ A declaração representou uma mutação imensa na história dos PCs na América Latina. Ela introduziu a heterodoxia como uma das formas de se pôr no mundo. A revolução deixou de ser pensada na forma ortodoxa, clássica, e passou a incorporar o tema da nação e a aliança com setores das elites, inclusive da burguesia.

Não por acaso, a Declaração de Março gerou uma discussão interna, que acabou levando a um racha e à criação do PC do B, afinado com uma visão mais ortodoxa do comunismo. Ela foi a raiz também para posições que PCB e PC do B adotariam durante a ditadura militar: um defendendo as alianças com setores progressistas e outro partindo para a luta armada.

Ainda distante da democracia

Foi também no documento que o partido começou a discutir mais a fundo a questão da democracia.

¿ A declaração sublinhava a importância da questão democrática. Talvez tenha sido o primeiro documento do partido a fazer isso ¿ afirma Coutinho. ¿ Mas persistia a idéia de que a luta pela democracia era apenas uma etapa na luta pelo socialismo. Ainda não havia a idéia de que a democracia não é ¿um¿ caminho para o socialismo, mas sim ¿o¿ caminho do socialismo. Ainda não se via que, se sem socialismo não há democracia substantiva, tampouco há socialismo sem democracia. Faltava um distanciamento crítico em face da União Soviética.

Werneck Vianna concorda.

¿ A declaração afirmava a questão nacional com uma ênfase muito forte, a questão democrática vinha à sua sombra, não tinha vigência autônoma, não tinha legitimidade per se ¿ afirma Vianna. ¿ Com isso, essa grande movida do comunismo brasileiro em direção ao seu país, um pouco mais à frente, criou obstáculos por sua própria incapacidade de pensar a questão democrática como um valor em si mesmo. Atrapalhou porque não preparou o partido e os comunistas brasileiros para o avanço que restava, para o fato de que a democracia era a via real para as transformações sociais do país.

Em geral, os especialistas que analisam os caminhos do comunismo acham que as mudanças trazidas pela Declaração de Março foram significativas, mas insuficientes.

¿ Acho que as mudanças não foram suficientes. Mas também acho que nunca seriam ¿ avalia o filósofo Leandro Konder, ex-integrante do partido e um dos fundadores do PSOL. ¿ Na época, nós esperávamos uma modernização, lutamos por ela, mas meu grupo foi derrotado. A gente se iludia em relação à possibilidade de fazer a modernização, salvar o partido, dar a ele uma força que nunca teve. A conclusão a que eu chego é que aquele partido já estava superado, não adiantava mudar algumas idéias.