Título: Do idealismo mesmo, sobrou muito pouco
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Fonte: O Globo, 23/03/2008, O País, p. 14

Cientista destaca capacidade de mobilização dos estudantes em 68, mas diz que utopias da época desapareceram

O cientista político João Roberto Martins Filho, de 54 anos, estudou os dois lados dos acontecimentos de 1968: a mobilização estudantil que levou à Passeata dos Cem Mil contra a ditadura, em junho, e a conspiração militar que culminou com o AI-5, em dezembro. Para ele, o movimento estudantil foi massa de manobra de militares radicais que buscavam pretexto para levar o regime à linha-dura que culminou em tortura e mortes. Autor de "1968 faz 30 anos" e "O palácio e a caserna", é professor da Universidade Federal de São Carlos e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa. Martins Filho diz que as Forças Armadas precisam rever seus erros: "Seria mais inteligente que negar fatos históricos".

Rernanda da Escóssia

Qual o legado de 68 para o Brasil?

JOÃO ROBERTO MARTINS FILHO: A geração do movimento de 68 chegou ao poder, seja no governo FH, seja no governo Lula. Atingiu o poder por vias institucionais, quando a perspectiva da época era revolucionária. Símbolos dessa geração são José Dirceu e José Genoino, recentemente punidos pela forma como se comprometeram com as regras do jogo, principalmente o financiamento de campanhas. Essa geração conheceu a política como ela é, se comprometeu, às vezes escorregou. O mundo hoje é muito diferente do que havia no sonho dos jovens em 68. Houve a queda do socialismo e avanço do capitalismo. O mundo hoje não é exatamente o que se sonhou na época.

Resta algo do idealismo de 68 depois do mensalão?

MARTINS FILHO: O fato de essa geração ter chegado ao poder por via democrática mostra que o Brasil mudou. O idealismo continuou no apoio de parte da classe média ao PT, quando ele era a alternativa. Há um potencial na classe média de apoio a causas progressistas, herdeiro não só de 68, mas de 61 a 68. Há uma geração marcada por ter feito política com grandes objetivos. Agora, houve uma desilusão muito grande. Vários partidos de esquerda herdaram esses ideais, mas na relação complexa entre ideais e necessidades de uma política de regras implacáveis. Do idealismo mesmo, sobrou muito pouco.

O que o senhor destaca como marco de 68?

MARTINS FILHO: Da dinâmica política, a parte mais visível foi o confronto entre governo e movimento estudantil, mas a mais forte foi o confronto de forças políticas nas Forças Armadas, que usaram o movimento estudantil para que a situação se deteriorasse e atendesse a objetivos que alguns setores tinham de fechar o regime.

O lado mais radical das Forças Armadas usou a mobilização estudantil para levar ao endurecimento do regime?

MARTINS FILHO: Eu chamaria de setores radicais ou duros. Elio Gaspari cita no livro dele uma frase do ministro Delfim Netto: "O que estava nos preocupando mesmo eram as lutas internas". O movimento estudantil tem tendência a se supervalorizar. Gostava da idéia de que estava fazendo a História, mas a História estava sendo feita em locais fechados. O movimento estudantil teve grande vigor até a Passeata dos Cem Mil (em junho) e a semana seguinte. Depois vieram as férias. Quando o movimento estava calmo, de dentro do Planalto, do gabinete militar, dirigido por um general radical chamado Jayme Portella, saiu a ordem para invadir a UnB, no final de agosto. Essa invasão levou ao AI-5. A partir daí houve o protesto do deputado Márcio Moreira Alves, e isso levou a um pedido para cassá-lo, que não foi concedido, e depois veio o AI-5. Eles sabiam que, invadindo a UnB, provocariam repercussão. É difícil para o movimento estudantil aceitar, vaidoso como é, que em algum momento pudesse estar sendo massa de manobra. O movimento estudantil mostrou o ápice de um protesto da classe média que tinha apoiado o golpe e em 1968 estava favorável ao fim da ditadura. Foi parte da revolta anticapitalista no mundo, o último grande protesto contra o capitalismo.

O resultado de 68 no Brasil foi frustrante?

MARTINS FILHO: Se formos pensar nas grandes utopias, sim. Mas não podemos esquecer que, depois de 1970, o regime enfrentou grande oposição. Houve derrota da perspectiva da luta armada. Depois voltou a idéia, que em 68 não tinha popularidade, de luta pela democracia. Em 68, a luta era pela revolução. Voltou a luta pela assembléia constituinte, que em 68 não existia, uma luta institucional. A luta de 1968 foi uma tentativa de escapar tanto do lado capitalista quando do lado comunista ditatorial.

Como o senhor analisa o movimento estudantil hoje?

MARTINS FILHO: A tendência é que se volte para uma causa imediata. Uma lição que todos os governos tiraram de 68 é que é perigoso enfrentar diretamente a comunidade estudantil. Os governos não propõem uma reforma universitária porque sabem que, como em 68, o movimento estudantil pode vir a ser um grande inimigo político. É o motivo pelo qual o governo Fernando Henrique não propôs o fim do ensino público. De 68, ficou a idéia de que o meio estudantil pode ser explosivo. Em 68 não se tinha idéia de que aquele meio privilegiado de elite poderia provocar aquela revolta.

O Brasil está devendo a abertura de arquivos militares. Vê perspectivas para isso?

MARTINS FILHO: As Forças Armadas vivem uma época diferente de 68, não estão no poder, têm dificuldades orçamentárias. Avançaram pouco na idéia de que têm que evitar a volta constante do fantasma do que aconteceu na ditadura. De tempos em tempos aparece nova notícia e elas se confrontam com o passado. A oficialidade da minha idade tem pouco comprometimento com o que aconteceu em 70, 71. Essa oficialidade ou vai ficar sempre se defrontando com a imagem do Exército que participou da repressão, ou vai ver que a melhor atitude seria fazer um documento reconhecendo que houve, pelo clima da época, grandes erros, e que agora se trata de olhar para a frente.

Mas as Forças Armadas jamais reconheceram seus erros.

MARTINS FILHO: Jamais. Prefiro pensar assim: no momento em que ocorrer (a revisão de erros), será sinal de visão de futuro das Forças Armadas. As Forças Armadas, em qualquer país, têm dificuldades em mexer com história, tradições. Qualquer coisa que manche sua tradição elas preferem ignorar. Mas, no Brasil, a cada seis meses tem um escândalo relativo à época da ditadura. Seria mais inteligente (da parte das Forças Armadas) uma manifestação que permitisse passar à frente. Não digo esquecer, porque a história não vai esquecer, os familiares não vão esquecer. Seria mais inteligente as Forças Armadas não ficarem o tempo todo tendo que dar explicações e negando o que aconteceu, são fatos históricos.

Quem venceu o conflito da memória?

MARTINS FILHO: A luta da memória a esquerda venceu, ainda que com uma imagem um pouco romantizada de 68. O que aconteceu em 68 foi um movimento estudantil forte, instrumentalizado por grupos do poder que venceram naquele ano, com o AI-5, e o golpe dentro do golpe em 69, com a subida do Médici. Mas a luta da memória quem venceu foi a esquerda. A esquerda pode aparecer como heróica. Com a dinâmica da repressão, é difícil aparecer heroísmo ali. O papel de herói fica para a esquerda. Os militares esqueceram uma lição que não deveriam ter esquecido, uma lição de (Carl von) Clausewitz, um teórico da guerra. Clausewitz dizia: "A guerra é dominada pela política". As operações militares têm que aceitar a predominância da política. Quando você faz guerra, tem que pensar no futuro. A ação contra a esquerda armada lançou uma mancha para as Forças Armadas. Elas se esqueceram de que um dia haveria um futuro. E de que certos limites, quando você passa, podem dar vitória militar, mas provocam uma pecha. As Forças Armadas tiveram a vitória militar, mas a esquerda teve a vitória política. É a lição de Clausewitz: a guerra tem um futuro.

PROTESTOS MIGRAM PARA A INTERNET, PERPETUANDO IDEAIS DE 68, na página 16