Título: Imposto e fortuna
Autor: Rosenfield, Denis Lerrer
Fonte: O Globo, 31/03/2008, Opinião, p. 7
Nem sempre a fortuna dos impostos é a felicidade dos cidadãos. Na maior parte das vezes, o contrário é o verdadeiro. Como não poderia deixar de ser num governo que não consegue equacionar os seus gastos, novos tributos surgem no horizonte, tanto mais imprevisíveis quanto mais se apresentam sob a forma do politicamente correto. Esconde, assim, não apenas a sua própria incompetência no trato da coisa pública, como, de forma mais abrangente, oculta o processo de burocratização da sociedade e de fortalecimento da própria máquina estatal. O Estado se torna cada vez mais refém das corporações sindicais, dos movimentos sociais e do PT.
O imposto sobre as grandes fortunas, a progressividade mais acentuada do Imposto de Renda e, talvez amanhã, o das heranças encaixam-se bem neste figurino, pois recortam a ideologia vigente, que procura opor ricos a pobres. Fortalece-se, dessa maneira, a clivagem da sociedade, de modo a suscitar uma maior intervenção governamental, tendo em vista a identidade apregoada entre o fortalecimento do Estado e o distributivismo social. Os atuais detentores do poder se colocam na posição de representantes dos oprimidos, criando condições para relativizar a propriedade privada, transferindo bens privados para a instância estatal, como se, assim, fosse feita justiça social. Em vez de controlar os seus próprios gastos e fazer justiça social com a alta tributação existente, o governo utiliza um discurso de suposta justiça social para apropriar-se dos bens alheios.
Impostos sobre grandes fortunas e herança são imposições feitas sobre os bens dos cidadãos. Não basta o que já pagam, mas deveriam pagar ainda mais. No caso das ditas grandes fortunas, o contribuinte já paga Imposto de Renda (sobre a sua renda), IPTU (sobre residência, patrimônio imóvel), IPVA (sobre automóveis, patrimônio móvel) e ITR (propriedade rural). Querem, agora, lhes impor uma outra tributação sobre os mesmos bens, além de alguns correlatos. A bitributação é supostamente justificada em nome de uma ideologia que se apresenta como válida por si mesma. O interessante é que as próprias autoridades governamentais apresentam esse imposto como um ponto ideológico que não admitiria nenhuma discussão, como se fosse de uma validade absoluta.
O que é, aliás, "grande fortuna"? Da forma que o projeto está sendo encaminhado, seria todo patrimônio superior a 1 milhão de reais. Na proposta tucana do governo anterior, esse valor teria sido, se aprovado, a metade disso. Petistas e tucanos aparecem aqui irmanados num mesmo afã de relativizar a propriedade privada, embora os últimos estejam revisando suas posições a respeito. Ora, se esses valores são os que distinguem uma "grande fortuna", qualquer pessoa que tenha um só imóvel desse valor deveria pagar um tributo - fala-se de 4% pagos anualmente -, que faria minguar progressivamente o seu patrimônio. Que estímulo teria para comprar um outro bem ou aumentar o seu patrimônio, se o Estado imediatamente lhe é apresentado como um sócio-obrigatório? Na verdade, os bens imóveis seriam os grandes prejudicados de tal política tributária. Quanto a bens financeiros, num mundo digital, eles desconhecem fronteiras.
Proudhon, o célebre anarquista da primeira metade do século XIX, que influenciou fortemente Marx, sobretudo o seu Manifesto Comunista, tornou-se, no curso dos anos, um ardoroso defensor da propriedade privada. Para ele, a propriedade privada é o núcleo estruturador da família, o que significa reconhecer, no caso da herança, o direito de sua não-tributação. Os pais têm o direito de legar aos seus os seus bens, sem que nenhuma instância tenha o direito de interferir nessa relação. A tributação da herança - e isso vale também para as grandes fortunas - seria uma interferência indevida do Estado, como se herdeiro ou proprietário de bens alheios fosse. Em suas próprias palavras: "Por quê, após haver encorajado a propriedade, nós puniríamos de seu gozo os proprietários? Nós somos socialistas, nós não somos invejosos." A propósito da progressividade mais acentuada do imposto, ele se posiciona também contra, porque essa transferência de propriedade apenas aumentaria o poder estatal. Impostos são uma espécie de "confisco da propriedade", opressor da sociedade, retirando desta a sua livre iniciativa.
DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.