Título: Mugabe enfrenta seu maior desafio nas urnas
Autor: Lino, Flávio Henrique
Fonte: O Globo, 29/03/2008, O Mundo, p. 54

Oposição no Zimbábue tenta hoje destronar ditador há 28 anos no poder, mas denuncia esquema de fraude

O país ainda se chamava Rodésia, e seus habitantes produziam todos os anos uma riqueza comparável à da Coréia do Sul, que iniciava então sua escalada rumo ao status de Tigre Asiático. Quarenta anos depois, os sul-coreanos chegaram ao Primeiro Mundo, enquanto o Zimbábue ¿ que como Rodésia foi um dos países mais prósperos da África nos anos 1960 ¿ luta para não afundar ainda mais além do Terceiro. Ao longo destas quatro décadas, uma pedra no meio do caminho fez descarrilhar o Zimbábue. Hoje, os eleitores do país têm a chance de remover nas urnas essa pedra chamada Robert Gabriel Mugabe, o ditador que há 28 anos vem transformando uma história nacional de relativo sucesso num dos fracassos mais retumbantes de construção de nações dos tempos recentes.

O desafio mais sério já feito ao poder quase monolítico de Mugabe vem de duas frentes: o ex-ministro das Finanças Simba Makoni, que se voltou contra o antigo patrão, e o veterano líder oposicionista Morgan Tsvangirai, do Movimento para a Mudança Democrática (MDC). Uma pesquisa do Instituto de Opinião Pública de Massa, de Harare, deu 28,3% de preferência a Tsvangirai, contra 20,3% a Mugabe, e apenas 8,6% a Makoni. Entretanto, 23,5% preferiram cautelosamente manter secretas suas escolhas. Ontem, a imprensa governista deu a Mugabe 57% das preferências, contra 27% de Tsvangirai, e 14% de Makoni. Também serão renovados o Parlamento e conselhos municipais.

Inflação no país é de 100.000% por ano

A oposição denunciou que o governo imprimiu três milhões de cédulas eleitorais a mais para fraudar o pleito, que não será vigiado por observadores internacionais independentes, barrados por Mugabe.

¿ Se a oposição conseguir levar a eleição para o segundo turno, é possível que consigam ganhar, mas Mugabe tem feito tudo para assegurar a vitória para si próprio ¿ disse ao GLOBO Edmond Keller, diretor do setor de África do Centro de Pesquisa de Globalização da Universidade da Califórnia. ¿ A curto prazo, não vejo saída para o Zimbábue.

Eleito pelo voto popular em 1980, numa eleição celebrada no mundo inteiro por enterrar o regime racista da minoria branca da antiga Rodésia, Mugabe não demorou a sepultar também a recém-nascida democracia zimbabuana. Sob um regime de partido único, perseguiu a oposição, encabrestou o Judiciário e tirou os poderes reais do Parlamento. Para ganhar apoio das massas negras, tomou as terras dos brancos, que eram o esteio da economia e deixaram o país.

O resultado, após quase três décadas de desmando, é uma inflação de 100.000% ao ano, escassez de energia e alimentos, 90% da população abaixo do nível de pobreza e cerca de 75% na economia informal. Pelo menos 3,5 milhões de zimbabuanos emigraram, tentando escapar da miséria, que aumentou dramaticamente com o encolhimento de 40% do PIB (o conjunto de riquezas produzidas no país) entre 1999 e 2007. Dos que ficaram, 2,6 milhões (20% da população) dependem da distribuição de comida do Programa Mundial de Alimentos da ONU para sobreviver. Na área da saúde, a tragédia é ainda maior: um em cada quatro adultos está contaminado pelo vírus da Aids, o que fez a expectativa de vida despencar para 37 anos, nível comparável aos do início do século XX.

O ditador de 84 anos, no entanto, já deu indícios de que não vai largar o poder facilmente: num comício, ele disse que votos em seus adversários ¿serão desperdiçados¿. Os chefes do Exército e da polícia, por sua vez, avisaram: não aceitarão a derrota do patrão, e puseram as forças de segurança em alerta. Ainda assim, o governo tem tentado cooptar o apoio do eleitorado, anunciando aumentos de salários, nacionalizações de empresas e distribuindo tratores e arados a chefes de aldeias.

¿ Os mecanismos de coerção variam de ameaça pura e simples de violência a distribuição de recursos, como comida, aos que andarem na linha do governo ¿ disse o professor de história Timothy Burke, do Swarthmore College, na Pensilvânia, especializado em Zimbábue.

Com isso, Mugabe busca evitar surpresas desagradáveis, que poderiam surgir da determinação de zimbabuanos como a ex-dona de salão identificada pela rede britânica BBC apenas como Maria. Sua vida é um retrato do país: com a crise, perdeu seu negócio, viu-se forçada a emigrar para a Zâmbia e trabalha como prostituta para sustentar a mãe, dois filhos e sete sobrinhos tornados órfãos pela Aids. Mas vai voltar para votar hoje.

¿ Tenho esperança de algo melhor... algo que mude tudo.