Título: De roupa nova
Autor: Jansen, Roberta
Fonte: O Globo, 29/03/2008, Ciência, p. 56

Chegada da Corte mudou hábitos sociais e jeito de vestir no país

Reclusas, semi-analfabetas, cobertas por mantilhas praticamente da cabeça aos pés. Assim viviam as mulheres até a chegada da Família Real ao país com seus costumes de metrópole e suas modas européias. Não que a vinda da Corte tenha provocado uma mudança radical de hábitos da noite para o dia, como frisam historiadores. Mas, certamente, deu início a um processo que alteraria para sempre a vida social das brasileiras e a desnudaria gradualmente.

¿ Não se deve pensar que não havia nada antes da chegada da Corte ¿ ressalta a historiadora Claudia Heynemann, pesquisadora do Arquivo Nacional. ¿ A influência do Iluminismo se fazia sentir, muitos tinham estudado em Portugal, viajado, algumas idéias circulavam. Não vivíamos apartados do mundo. Mas, em relação à vida da portuguesa, a da mulher brasileira branca e cristã era muito reclusa. Ela vivia submissa às leis do marido e sob forte influência religiosa.

A vida social da brasileira branca no início do século XIX praticamente inexistia. A maior parte do tempo, ela ficava confinada em casa, restrita aos afazeres domésticos e ao contato com a família e eventuais escravos. Numa sociedade em que não havia imprensa, ou seja, em que as notícias não circulavam com facilidade, e em que o comércio era incipiente, não havia oferta nem demanda de vida social e muito menos de moda.

De acordo com historiadores e com relatos de viajantes, as mulheres praticamente só saíam às ruas para ir à missa e, muito raramente, para alguma visita. Paradoxalmente, as escravas tinham mais liberdade nesse sentido. As que trabalhavam como domésticas saíam às ruas rotineiramente para fazer compras. Algumas trabalhavam nas ruas, vendendo quitutes e outras mercadorias.

¿ Cabia às escravas vender e comprar coisas na rua ¿ conta a historiadora Maria do Carmo Rainho, também do Arquivo Nacional. ¿ De certa forma, elas faziam a ponte entre dois mundos, uma forma de comunicação. Existia para elas essa socialização, essa troca de experiências, de conversa. Era um espaço de convivência ao qual a mulher branca não tinha acesso.

Cobertas por mantilhas

Nas raras vezes em que as mulheres brancas iam às ruas, estavam invariavelmente cobertas por mantilhas ¿ uma herança moura que já havia sido abolida na metrópole. Segundo especialistas, consultoras da exposição ¿Rio de Janeiro, capital de Portugal¿, mesmo nas famílias mais abastadas, os trajes caseiros femininos em tecidos grosseiros beiravam a negligência e em pouco se diferenciavam das roupas usadas pelas escravas. Camisolão e chinelo eram a regra. Isso se explica em grande parte, pelas próprias regras comerciais vigentes na colônia, onde, por exemplo, o único tecido que se tinha autorização para fabricar era o algodão grosseiro. Tecidos finos, como os usados na Europa, eram extremamente raros.

¿ O que marca a vida da mulher do período colonial é a reclusão ¿ sustenta Maria do Carmo. ¿ Não há sociabilidade nas ruas, as mulheres brancas não circulam. Essa vida tão restrita, sem oportunidades de exibição, também gera um certo descuido com os padrões das vestimentas.

Ainda que não de forma repentina ou radical, a chegada da Corte vai alterar essa realidade. Primeiro a partir das próprias medidas políticas tomadas, como a Abertura dos Portos ¿ que permitiu o comércio até então bastante restrito de mercadorias mais luxuosas ¿ e a autorização para a criação da imprensa nacional ¿ o que vai fazer com que as informações comecem a circular com mais agilidade. Data de 1827, por exemplo, a primeira coluna sobre moda publicada num jornal do do país, o ¿Espelho Diamantino¿.

Vestuário como símbolo de status

Mas não foi só isso. A Corte, com seus hábitos europeus, passaria a demandar produtos e espaços sociais de diversão, criando um mercado antes inexistente, sobretudo no que diz respeito às mulheres.

¿ Claro que Portugal não era a França revolucionária. Mas tinha passado por amplas reformas no século XVIII ¿ aponta Cláudia. ¿ Lisboa havia se modernizado, houve uma reforma do ensino, era uma sociedade mais aberta. E as mulheres da Corte tinham muito mais vida social, com os teatros, os saraus, os restaurantes, as festas, o convívio com estrangeiros.

O choque cultural foi mútuo, segundo as pesquisadoras.

¿ As mulheres que vêm da Europa se vestem de maneira diferente, têm uma preocupação com a moda ¿ diz Maria do Carmo. ¿ Elas estranham encontrar pessoas vestidas com mantilhas, tão diferentes das roupas da Europa, com tecidos mais finos. Há esse choque entre o corpo mais coberto em oposição a um desnudamento maior, à uma preocupação com a moda.

O choque é grande também em relação aos costumes e às maneiras. Comia-se com as mãos, como conta Maria do Carmo, não se usava talheres, não havia requinte algum na apresentação ou consumo das coisas. A presença da Corte imporia também um modelo de civilidade e sofisticação a ser seguido por quem almejasse participar de tão seleto grupo.

Ao lado da cor da pele, da riqueza acumulada e dos títulos de nobreza, os bons modos, o requinte cultural e as roupas passaram a ser valores importantes para diferenciação social. Sobretudo para os que queriam se igualar à aristocracia européia.

¿ A vida começou a se organizar de forma diferente a partir da vinda da Corte ¿ afirma Maria do Carmo. ¿ Os que vieram começaram a desejar que se reproduzisse o que tinham lá: saraus, bailes, teatros, restaurantes, que foram freqüentados por essas pessoas e também pelas daqui. Por isso, se tornou importante mudar os modos, civilizar os costumes, ter noção de etiqueta. Começaram a circular manuais de boas maneiras, que ensinavam como se vestir, como se comportar. Houve a ¿civilização¿ dos modos. Passou a ser importante se mostrar igual aos europeus e marcar as diferenças dos pobres, dos escravos.