Título: Ladrão é réu onde bandido vira juiz
Autor: Ventura, Mauro
Fonte: O Globo, 30/03/2008, Rio, p. 20

Garoto que rouba em favela é barbaramente torturado e enfrenta, em meio a uma platéia de moradores, um julgamento realizado por nove traficantes

Do alto-falante da birosca saem versos - "eu só quero amar/eu preciso amar" - que soam irônicos para a ocasião, mas B. está mais preocupado com a arma engatilhada à sua frente do que com a trilha sonora que provavelmente embalará sua morte. "É agora que vou para o caixão", lamenta-se, enquanto o suingue do cantor Bebeto preenche o ambiente com a música "Cheiro de rosa", num curioso contraste com o forte odor de sujeira e pânico que sai de B. Quase tão doloroso quanto o pensamento alarmante é saber que sua mãe tinha dito, mais cedo:

- Nem adianta eu pedir o corpo porque não tenho dinheiro para enterrar.

É uma oportunidade rara aquela, e alguns moradores da favela tratam de aproveitá-la. A cena lhes é familiar - não é a primeira vez que vêem o destino de um bandido ser decidido à sua frente, em meio a uma área pública do morro - mas o réu tem características específicas. Ao contrário dos estupradores e "X-9" habituais, o garoto de 15 anos que está sendo julgado no tribunal do tráfico naquela segunda-feira à noite é um "rato de favela". Traduzindo: um ladrão que rouba dentro do próprio morro. Com um agravante: um ladrão reincidente.

- Dificilmente aparece um rato de favela - diria mais tarde um evangélico presente à sessão. - Se os traficantes liberam, ele vai dar cria, vai continuar roubando no morro.

Ou seja, na lógica do crime, tudo bem assaltar, desde que da favela para fora. De onde está, B. consegue escutar as manifestações populares. E não está gostando nada do que ouve. Desde cedo, alguns moradores vêm demonstrando compaixão - "Pô, o que é que tu fez dessa vez?", "Tu é bom, não tem necessidade de fazer isso" - mas a maioria é hostil: "Tem que matar", "Merece morrer", "Tem que ir para fora do morro", "Tem que passar o cerol". B. sabe que é culpado até o pescoço, mas a perversidade dos bandidos e a expiação em praça pública estavam sendo demais até para quem, como ele, é veterano em levar coças dos traficantes.

O medo de encarar o "amigo que corta"

Algemado e com os pés amarrados, B. já está sendo torturado há quase 24 horas. "Não entendo como agüenta tanta paulada. Meu irmão, nós batemos muito nele", contaria depois um traficante. B. pensou em pular num abismo, achando que só quebraria as pernas, mas as algemas, os pés amarrados e um vigia sempre de olho impediram o gesto que resultaria em sua morte. A certa altura do calvário, ouviu dizer que iam chamar o "amigo que corta" - o homem do bando responsável por matar e fatiar os corpos. Por sorte, o telefone estava descarregado. O marginal fora o mesmo que, anos antes, quase dera cabo de seu tio. O irmão de sua mãe hoje está preso, mas carrega no corpo as marcas da surra de chicote de cavalo que levou. Ele também era "rato de favela".

- Peguei o ritmo dele - diz B.

A chuva forte que caíra mais cedo dera uma trégua, mas ainda assim o Land Rover sobe penosamente as vielas do morro, desviando-se de crianças, velhos, adultos, cães, motos e carros na contramão. O veículo tem um aparelho que sinaliza a proximidade com obstáculos, e a máquina não cessa de apitar. A pressa é grande.

- Tudo por uma alma - diz uma das irmãs.

No carro vai um grupo de evangélicos da Assembléia de Deus dos Últimos Dias, convocado momentos antes para tentar evitar a morte de B. As perspectivas são desanimadoras. Dias antes, eles já tinham penado para convencer os traficantes a liberar B., mas o garoto não ficou nem dois dias na igreja. Fugiu - "não agüento usar calça", alegou - e voltou à favela para ver a mãe e os irmãos. Capturado, foi novamente a julgamento no tribunal paralelo do morro.

Aquele "exército" religioso foi chamado por dois irmãos da igreja, que estavam na favela panfletando e orando pelos enfermos. Rogério Menezes e Álvaro Silva foram abordados por moradores, que avisaram: "Tem um garoto amarrado para morrer". Pelo olhar, eles foram ditando o caminho à dupla, já que tinham medo de denunciar o esconderijo. Tomaram um susto ao descobrir que era o mesmo rapaz que já tinham libertado.

- Percebemos que ele tinha fugido da igreja ao procurá-lo para dar um pedaço de bolo. Era aniversário de uma cantora nossa - diz Menezes.

Para voltar à comunidade, B. pulou a janela de um ônibus, sob o olhar complacente do motorista, que viu e começou a rir. Depois se escondeu no chão de outro veículo, que estava no ponto final, e retornou ao morro.

Mas dessa vez Menezes e Silva não tiveram sucesso em libertá-lo. Após duas horas, decidiram recorrer a seu líder, o pastor Marcos Pereira, fundador da igreja, tarimbado na tarefa de salvar gente condenada pelo tráfico - ainda que ele prefira transferir os créditos para Deus. Na chegada à favela, o pastor é recebido por nove traficantes armados.

- Sou um homem que trabalha na Faixa de Gaza - disse o religioso posteriormente.

Ele pergunta pelo garoto e um deles ironiza:

- Tá ali, confortável, bonitinho.

Esse bandido vai ser o promotor daquele julgamento extra-oficial, uma espécie de TRT - Tribunal Regional do Tráfico. Foi indicado ao cargo pelo juiz - ou melhor, pelo chefe do morro - que, em vez de um martelo, porta uma metralhadora. E, no lugar da beca, traja chinelo, camiseta, bermuda, mochila e boné. Em contraste com a linguagem floreada, usa gírias e um vocabulário rude.