Título: Quer ver eu te matar na frente do pastor?
Autor: Ventura, Mauro
Fonte: O Globo, 30/03/2008, Rio, p. 21

Após negociações tensas e ameaças feitas por traficantes, menor é libertado

O julgamento de B. teve lugar em dois pontos da favela. Começou num beco, ao lado de uma ribanceira, para onde é conduzido o pastor Marcos Pereira logo que chega ao morro. Ele se assusta com o estado de B.

- Olha como é que tá você, ô cara.

O traficante ameaça o rapaz:

- Eu vou te matar agora, quer ver eu te matar na frente do pastor?

- Pelo amor de Deus, deixa eu fazer uma oração, deixa eu orar por você - pede Pereira.

- Não bota a mão na minha cabeça, não - afasta o bandido.

Diante da reação ríspida, um pensamento inquietante passa pela cabeça do pastor evangélico: "Ele deve ser macumbeiro."

Pereira faz uma oração para B. - "Tá amarrado, Satanás, é o demônio, manifestou, é o espírito do roubo" -, mas percebe que o traficante continua intransigente. Como bom advogado, muda de estratégia e finge entrar no jogo do bandido. Dirige-se ao rapaz, com voz firme:

- Estou sendo esculachado por causa de tu, tu é safado - diz, enquanto dá uns tapas no peito de B.

"Tu é defunto ambulante"

A negociação prossegue. O pastor faz suas alegações - "eu me responsabilizo de novo, sei que vocês me consideram" -, o garoto se defende com voz hesitante, abafada pela fita crepe que envolve sua boca - "vou tomar juízo" - e o bandido lança mão de seus argumentos - "tu é defunto ambulante, não tem mais salvação nenhuma, vai demorar dez dias e vai parar na minha mão de novo". Enquanto fala, aperta com firmeza um ferimento a faca nas costas de B., que faz força para não gritar.

Naquele fórum improvisado, a audiência se prolonga, com novas ameaças, até que Pereira consegue levar o rapaz para o meio da favela, onde vai se desenrolar a etapa final do julgamento. Quando o pastor está se aproximando do carro, vem o susto maior: o bandido se aproxima de B. e balança a arma engatilhada diante de seu rosto, com a canção de Bebeto como fundo musical. Alguns moradores passam indiferentes. Outros assistem à distância, dos bares ou da janela de casa.

- Faz isso não, vai me desrespeitar - suplica o pastor.

- Eu respeito, mas esse moleque não tem jeito, não.

O pastor lembraria mais tarde:

- Na hora em que ele apontou a arma, meu coração gelou como nunca. Eles gostam de matar na frente de um monte de gente para servir de exemplo e botar moral. Fiquei nervoso, e não sou de ficar. Vi a sede que estavam de matar o garoto.

De fato, naquele circo romano, a sentença dava a impressão de estar decidida. Parecia que o pastor e a vontade divina iriam falhar, após B. se dar ao luxo de ter sobrevivido à brutalidade de seus carrascos.

Ele fora capturado de madrugada, escondido em casa. O porta-malas de um carro serviu de cárcere, enquanto os bandidos iam a um baile funk. Mas, quando se mexia, o alarme tocava e os traficantes vinham correndo, achando que estavam tentando furtar o veículo. Apanhava toda vez. Numa das surras, quebraram duas garrafas de uísque em seu joelho. Levou pancada de "perna de três" - pedaço grosso de madeira usado para escorar laje -, tomou choques elétricos, sofreu pisões no rosto, foi obrigado a comer cinco vidros de pimenta, teve a unha quase arrancada a faca, recebeu pedradas e uma facada nas costas. Enquanto tiravam pele de seu tornozelo, seus algozes diziam:

- Olha como a faca está amoladinha.

A certa altura, foi posto debaixo do chuveiro e jogado na fogueira. Escapou com queimaduras no braço esquerdo. No porta-malas, teve o rosto todo embrulhado com fita crepe. Chegou a desmaiar por falta de ar. Uma idéia apavorante assaltou-lhe: o "microondas" - ser queimado dentro de pneus.

- Me mata logo, não agüento mais sofrer - suplicou.

E essa seria sua pena, que acabou convertida em exílio na igreja do pastor, no bairro de Éden, em São João de Meriti. Após convencer os bandidos, Pereira forma um círculo e faz uma oração:

- Vamos dar uma rajada em Satanás, vamos dar um glória a Deus bem alto.

- Glória a Deus! - repetem os marginais.

- Se não fosse Deus, eu estaria no caixão - balbucia B.

Indignado com o veredicto, um dos traficantes diz:

- Da próxima vez, quem vai matar sou eu.