Título: Ponto de corte
Autor: Leitão, Miriam
Fonte: O Globo, 01/04/2008, Economia, p. 18

O presidente Lula decidiu fazer duas manobras arriscadas: antecipar a discussão eleitoral, com a transformação de qualquer ato de governo em ato de campanha, com um discurso explicitamente eleitoreiro, e indicar um favorito como sucessor. Isso levou todos os olhos para a ministra Dilma Rousseff. No gabinete dela, outra manobra arriscada: preparar um dossiê contra o ex-presidente.

O novelo no qual a ministra Dilma está foi todo montado pelo próprio governo. Nada é por acaso. O primeiro movimento, a antecipação do clima eleitoral, é compulsão do presidente. Lula é menos afeito às rotinas burocráticas do cargo e muito mais empolgado com os espetáculos de subir em palanque, ser elogiado e ter seus improvisos aplaudidos por platéia cativa. Para Lula, governar é fazer campanha política. O segundo movimento, a seleção de documentos supostamente comprometedores contra adversários, é método de trabalho do PT.

Todo mundo sabe a diferença entre um banco de dados e um dossiê. A escolha de algumas informações que pudessem constranger alguém, sem qualquer critério cronológico, e com um foco específico em alguma pessoa não é banco de dados. Por que fazer tal coisa?

Para responder a isso é preciso recuar no tempo, na campanha de 2006, e lembrar quem estava no Hotel Ibis, perto do aeroporto de Congonhas, comprando um dossiê com denúncias contra o então candidato a governador de São Paulo, José Serra. A mala onde foi encontrado o dinheiro foi levada para dentro do hotel pelo coordenador da campanha do senador Aloizio Mercadante, Hamilton Lacerda. As pessoas que a polícia flagrou dentro do hotel trabalhavam sob as ordens de Jorge Lorenzetti, chefe do serviço de inteligência da campanha do presidente da República e freqüentador da cozinha e da churrasqueira de Lula. O dinheiro que estava lá era sem origem, não declarado, em espécie. Um dinheiro ilegal de campanha, como o que estava no caixa dois confesso de Delúbio Soares e Marcos Valério. Esse caso do Hotel Ibis não teve punição e foi tratado com leveza pelo presidente da República. O governo só se indignou com o investigador da Polícia Federal que teria divulgado a foto do dinheiro, o qual teria cometido um crime que pode ser definido como "quebra de privacidade de compradores de dossiê com dinheiro ilegal".

Se um flagrante daquela dimensão não teve punição, isso incentivou a prática de produzir e negociar dossiês. Dessa impunidade é que nasceu a sem-cerimônia dos que foram pescar no banco de dados da ministra Dilma Rousseff.

Há dois problemas nesta colheita de dados. Primeiro, o país precisa rediscutir os critérios da segurança presidencial na classificação de que dados não podem ter transparência. Pelo que já foi divulgado nos cartões corporativos dos seguranças do presidente Lula e agora, há um óbvio exagero na relação de gastos sobre os quais o contribuinte não pode ter informação. O país precisa rever esses critérios e tornar público o maior volume de dados possíveis, resguardando apenas o que deve ser resguardado. Segundo, se os dados são classificados como sigilosos e alguém dentro da máquina os espiona com objetivos outros que não o bom andamento do serviço público, é uso criminoso da máquina pública contra adversários.

Tudo isso pode ser só uma tempestade, e a ministra Dilma Rousseff pode passar bem por ela. Mas, como primeiro embate, ela já cometeu alguns erros: versões sucessivas e declarações intempestivas. No telefonema para a professora Ruth Cardoso, a ministra garantiu que nada foi feito na Casa Civil. Na reação do fim de semana, declarou que "tem mais o que fazer". Se, ao afirmar que "tem mais o que fazer", ela se referia a não ter tempo para intrigas e conspirações, ótimo. Se estava se referindo ao Congresso, é um erro institucional, porque uma das funções do parlamento é fazer comissões parlamentares de inquérito.

Uma dúvida que sempre pairou é se a ministra será uma boa candidata, caso passe pelos seus concorrentes dentro do PT. É bom lembrar que ela não é originalmente petista, não faz parte dos que vêm das raízes do movimento. Era do PDT.

Para a televisão, ela é uma entrevistada difícil. Em televisão, diz-se de alguém que fala sem pausa, com idéias que não se completam e que se conectam a outras, que é uma pessoa que não tem ponto de corte. Em bom português, uma pessoa prolixa. Um entrevistado sem ponto de corte também irrita o telespectador, que se cansa antes que uma idéia seja transmitida. Uma pessoa assim tem dificuldades de se comunicar em geral, o que é a arma fundamental dos políticos.

Nos contatos com os jornalistas, a ministra Dilma Rousseff já deixou um rastro enorme de respostas ríspidas. Acusou o embaixador Sebastião do Rego Barros de "fazer política". Acusou colegas de trabalho de terem uma idéia "rudimentar". Definiu como "ingenuidade tupiniquim" querer indicações técnicas para as estatais. Mais do que o que fala, é o tom que usa, o qual, na televisão, parece ainda mais agressivo. Numa dessas, ela pode escorregar e soltar uma frase que a complique. Até a experiente comunicadora Marta Suplicy sabe que não se pode relaxar. Há muito chão pela frente. Mas, por enquanto, o que se pode dizer da pré-candidata Dilma Rousseff é que ela tem muito a treinar e aprender, e não está se saindo bem neste primeiro e prematuro embate criado dentro do seu próprio gabinete.